Ação rescisória trabalhista e seus efeitos: devolução de verbas de natureza alimentar – Dannúbia Santos Sousa Nascimento

A ação rescisória na esfera trabalhista, e a devolução de valores então recebidos pelo trabalhador é tema de conflito entre os entendimentos do TST e do STF.

Introdução

Dentre os efeitos da ação rescisória, está como o principal a desconstituição do título executivo judicial, de modo a retornar ao status quo ante, quando verificados alguns dos requisitos previstos no art. 966, incisos I a VIII do CPC, ou seja, em havendo decisão proferida por força de prevaricação, concussão ou corrução do juiz; ou se proferida decisão por juiz impedido ou incompetente; ou se a decisão resultar de dolo ou coação da parte vencedora; se houver ofensa à coisa julgada.

A ação rescisória se presta ainda para desconstituir sentença que violar manifestamente a norma jurídica; ou que for fundada em prova falsa; ou quando o autor da rescisória tiver posteriormente ao trânsito em julgado na ação principal, conhecimento de prova nova cuja existência era desconhecida; ou quando a decisão terminativa foi proferida com base em erro de fato verificável no exame dos autos.

A medida processual é adotada, especialmente, para que não haja enriquecimento sem causa, nos termos do art. 876 do Código Civil.

No âmbito trabalhista, é possível o ingresso da ação rescisória, conforme previsto no art. 836 da CLT.

Especialmente na esfera trabalhista é que passamos a apurar no presente estudo as divergências de entendimentos entre decisões do Tribunal Superior do Trabalho e do Especialmente na esfera trabalhista é que passamos a apurar no presente estudo as divergências de entendimentos entre decisões do Tribunal Superior do Trabalho e do Supremo Tribunal Federal, relativamente à devolução de verbas de natureza alimentar, em decorrência de decisão oriunda de ação rescisória, e os efeitos desta última.

O questionamento a ser respondido neste artigo é: cabe a devolução de verbas de natureza alimentar, recebidas de boa-fé, em razão de ação rescisória na esfera trabalhista?

A dicotomia de entendimentos do TST e do STF acerca dos efeitos da ação rescisória no âmbito trabalhista

Como delineado, a ação rescisória visa a desconstituição de título executivo judicial, como regra geral.

Quando estamos diante de uma decisão procedente em uma ação rescisória trabalhista, em casos em que a decisão rescindida que conferiu ao trabalhador o direito ao recebimento de verbas, que tem natureza alimentar, e que foram recebidas de boa-fé, tais valores, obrigatoriamente e independentemente de tais requisitos, deve ser devolvida?

Essa é a celeuma atualmente existente sobre o tema, quando visualizados os entendimentos do Tribunal Superior do Trabalho e do Supremo Tribunal Federal.

Majoritariamente, para o TST, nos casos de decisões desconstituídas por ação rescisória, em que o empregado tenha recebido verbas, ainda que de natureza alimentar e tenham sido recebidas de boa-fé pelo trabalhador, estas deverão ser devolvidas.

Para a Corte Superior Trabalhista, mesmo no âmbito laboral, o caráter alimentar e a boa-fé não tem o condão de afastar o efeito ex-tunc da ação rescisória. Vale colacionar, a título exemplificativo, os julgados da 7ª e da 8ª Turmas do TST, neste mesmo sentido:

A) AGRAVO DE INSTRUMENTO EM RECURSO DE REVISTA. AÇÃO DE REPETIÇÃO DO INDÉBITO. VALORES RECEBIDOS EM EXECUÇÃO. TÍTULO EXECUTIVO JUDICIAL DESCONSTITUÍDO POR AÇÃO RESCISÓRIA. Ante a demonstração de aparente violação do art. 884 do CC, merece processamento o recurso de revista. Agravo de instrumento conhecido e provido. B) RECURSO DE REVISTA. AÇÃO DE REPETIÇÃO DO INDÉBITO. VALORES RECEBIDOS EM EXECUÇÃO. TÍTULO EXECUTIVO JUDICIAL DESCONSTITUÍDO POR AÇÃO RESCISÓRIA. O Regional concluiu que as parcelas recebidas por força da decisão transitada em julgado ostentam natureza alimentar e, por terem sido recebidas de boa-fé, não obrigam a parte demandada à devolução, ainda que insubsistente o comando judicial que determinou o pagamento, em virtude da procedência de ação rescisória. No entanto, essa conclusão não merece prevalecer, sob pena de tornar a ação rescisória totalmente inócua, na medida em que o seu objeto precípuo é desconstituir o título executivo judicial, tornando ineficaz a decisão judicial transitada em julgado , e, portanto, tem natureza jurídica constitutiva negativa e produz efeitos ex tunc . Logo, o caráter alimentar das verbas demandadas e a possível boa-fé da ré à época da execução do título rescindido não constituem óbice à pretensão deduzida nesta demanda, a qual tem amparo no princípio da vedação ao enriquecimento ilícito. Recurso de revista conhecido e parcialmente provido. (TST – RR: 5266420175100002, Relator: Dora Maria Da Costa, Data de Julgamento: 18/11/2020, 8ª Turma, Data de Publicação: 27/11/2020)

AGRAVO DE INSTRUMENTO EM RECURSO DE REVISTA INTERPOSTO PELA PARTE AUTORA. CPC/2015. INSTRUÇÃO NORMATIVA Nº 40 DO TST. LEI Nº 13.467/2017. AÇÃO DE REPETIÇÃO DE INDÉBITO. DESCONSTITUIÇÃO DA COISA JULGADA POR AÇÃO RESCISÓRIA. DEVOLUÇÃO DE VALORES RECEBIDOS PELOS EMPREGADOS. POSSIBILIDADE. DECISÃO REGIONAL EM DISSONÂNCIA COM A JURISPRUDÊNCIA DO TST. TRANSCENDÊNCIA POLÍTICA DA CAUSA CONSTATADA. Agravo de instrumento provido para determinar o processamento do recurso de revista, em face de haver sido demonstrada possível afronta ao artigo 884 do Código Civil. RECURSO DE REVISTA. CPC/2015. INSTRUÇÃO NORMATIVA Nº 40 DO TST. LEI Nº 13.467/2017. AÇÃO DE REPETIÇÃO DE INDÉBITO. DESCONSTITUIÇÃO DA COISA JULGADA POR AÇÃO RESCISÓRIA. DEVOLUÇÃO DE VALORES RECEBIDOS PELOS EMPREGADOS. POSSIBILIDADE. DECISÃO REGIONAL EM DISSONÂNCIA COM A JURISPRUDÊNCIA DO TST. TRANSCENDÊNCIA POLÍTICA DA CAUSA CONSTATADA. Esta Corte Superior já firmou posicionamento no sentido de ser devida a restituição de valores recebidos em razão de título executivo desconstituído por ação rescisória, independente da configuração de boa fé dos empregados contemplados pela decisão ora rescindida, mediante a pretensão de repetição de indébito. Tal procedimento é possível em face da natureza jurídica constitutiva negativa da ação rescisória que, ao anular o julgado de mérito proferido anteriormente, produz, no caso, efeitos ex tunc (retroativos). Logo, tem-se que, ao indeferir a pretensão da autora, o Tribunal Regional violou o preceito contido no artigo 884 do Código Civil, que veda o enriquecimento sem causa que o justifique. Recurso de revista conhecido e provido” (RR-969-88.2017.5.10.0010, 7ª Turma, Relator Ministro Claudio Mascarenhas Brandao, DEJT 25/06/2021).

Ocorre que, em sentido diverso, dentro do próprio TST, e em entendimento minoritário, há decisão da Seção de Dissídios Individuais, considerando indevida a devolução de valores recebidos de boa-fé na esfera laboral, ante a natureza alimentar da verba, conforme o precedente a seguir:

EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. RECURSO ORDINÁRIO EM AÇÃO RESCISÓRIA AJUIZADA SOB A ÉGIDE DO CPC DE 2015. OMISSÃO CONFIGURAÇÃO. PROVIMENTO. Detectada a existência de omissão, imperioso conceder provimento aos embargos de declaração, em respeito ao disposto no artigo 93, IX, da Constituição Federal, mas sem imprimir efeito modificativo ao julgado. Na esteira dos mais recentes julgados desta SBDI-2 do TST, do STF e do STJ, descabe a devolução de valores que ostentem natureza alimentar e que tenham sido recebidos de boa fé por força de decisão transitada em julgado, posteriormente desconstituída em ação rescisória. Embargos de declaração conhecidos e providos. (PROCESSO Nº TST-AR-1000863-84.2018.5.00.0000, Órgão Judicante: Subseção II Especializada em Dissídios Individuais Relator: Douglas Alencar Rodrigues, Julgamento: 16/03/2021, Publicação: 19/03/2021)

Não obstante, o Supremo Tribunal Federal dá especial elevo às questões relativas à natureza alimentar e ao recebimento de boa-fé, entendendo que não é devida a restituição de valores, ainda que por decisão desconstituída em ação rescisória, vejamos:

Direito Constitucional e Previdenciário. Agravo interno em ação rescisória. Irrepetibilidade dos valores já recebidos. Precedentes. 1. Agravo interno contra decisão desta Corte que deu provimento parcial ao pedido formulado na ação rescisória. 2. Não é possível determinar a devolução de valores já recebidos por força de decisão judicial transitada em julgado, por serem de natureza alimentar e auferidos de boa-fé. Precedentes. 3. Agravo interno a qual se nega provimento.” (STF-AR 1976 AgR/PR, Relator Ministro Roberto Barroso, Tribunal Pleno, DJe 01/06/2020)

PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. RECURSO ESPECIAL. OFENSA AO ART. 1.022 DO CPC/2015 NÃO CONFIGURADA. SERVIDOR PÚBLICO. VALORES RECEBIDOS POR FORÇA DE DECISÃO JUDICIAL TRANSITADA EM JULGADO, POSTERIORMENTE DESCONSTITUÍDA POR AÇÃO RESCISÓRIA. RESTITUIÇÃO. DESNECESSIDADE. PRESUNÇÃO DE BOA-FÉ.

1. Não há ofensa ao art. 1.022 do CPC/2015, pois o Tribunal de origem julgou integralmente a lide e solucionou a controvérsia em conformidade com o que lhe foi apresentado. O aresto vergastado manifestou-se explicitamente sobre a citada necessidade de devolução dos valores pagos indevidamente, afastando-a pelos argumentos expostos ao longo do voto. Além disso, o Tribunal a quo analisou expressamente a suposta ausência de boa-fé ante o julgamento da procedência de Ação Rescisória.
2. O acórdão recorrido decidiu em consonância com a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça de que não é devida a restituição dos valores que, por força de decisão transitada em julgado, foram recebidos de boa-fé, ainda que posteriormente tal decisão tenha sido desconstituída em Ação Rescisória. Precedentes: AgRg no REsp 1.428.646/CE, Rel. Ministro Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, DJe de 26/3/2014; e AgRg no AREsp 494.537/CE, Rel. Ministro Benedito Gonçalves, Primeira Turma, DJe de 8/4/2015.
3. Recurso Especial não provido.” (STJ-REsp 1801116/RS, Relator Ministro Herman Benjamin, 2ª Turma, DJe 31/05/2019)

Vemos nos precedentes, que não há uniformização nos entendimentos acerca dos efeitos da ação rescisória, se ex-tunc ou se ex-nunc, especialmente quando as questões relativas à natureza alimentar das verbas recebidas e a boa-fé de quem as recebeu por decisão judicial são pontos salutares.

Apenas para acalourar a celeuma existente, importante o destaque também para o entendimento no âmbito do Tribunal de Contas da União – TCU. A Súmula 106 deste Órgão preceitua que “O julgamento pela ilegalidade das concessões de reforma, aposentadoria e pensão, não implica, por si só, a obrigatoriedade de reposição das importâncias já recebidas de boa-fé, até a data do conhecimento da decisão pelo Órgão o competente” (destaco).

Portanto, diferentemente do entendimento majoritário no TST, também o TCU vislumbra que verbas recebidas de boa-fé, e consideradas ilegais em sua concessão, não implicam automaticamente a devolução, até a dada do conhecimento da decisão, sendo o efeito do julgado rescisório, portanto, ex-nunc.

Os entraves acerca da devolução ou não de verbas trabalhistas desconstituídas posteriormente são destacadas pelo Doutrinador Homero Batista Mateus da Silva, que vai além nas discussões jurisprudenciais, lembrando as “idas e vindas” do tema entre o TST e do STF:

Restituição de parcela já recebida.

Questão tormentosa se concentra no passo que deverá ser tomado pela empresa que, tendo obtido êxito na ação rescisória que reverteu a decisão e julgou improcedente as pretensões do reclamante, já sofrera a execução completa e pagara a dívida julgada extinta. A OJ 28 da SDI-2 não permitia que a parte usasse os autos da ação rescisória para começar a execução contra o trabalhador, mas veio a ser cancelada em novembro de 2008, especialmente diante da existência do parágrafo único ao art. 836, parágrafo único, da CLT, inserido pela MedProv 2.180-35/2001, que dispõe: “A execução da decisão proferida em ação rescisória far-se-á nos próprios autos da ação que lhe deu origem, e será instruída com o acórdão da rescisória e a respectiva certidão de trânsito em julgado”. As diferenças salariais oriundas de planos econômicos, que geraram julgados favoráveis aos trabalhadores e, depois das decisões do Supremo Tribunal Federal, levaram ao acolhimento de ações rescisórias dos empregadores, são exemplos recorrentes de execução para restituição de parcelas já auferidas – conforme debate havido no Processo 8673800-51.2003.5.04.0900. Em maio de 2015, a SDI-I do TST passou a admitir ação de repetição de indébito para os casos em que as empresas tenham pago salários e demais vantagens aos empregados, fruto de decisões cassadas por ação rescisória, e em que não tenha havido mais tempo hábil para a cobrança nos próprios autos da ação que lhe deu origem. “Entendimento contrário implicaria na inutilidade da ação rescisória”, asseverou o julgado. A boa-fé do trabalhador no recebimento dos valores indevidos ou sua natureza alimentar não foram considerados fatos impeditivos para a repetição do indébito – Processo 32500-82.2003.5.07.0006.

Considerações Finais

Conforme traçado linhas acima, e longe de se esgotar os entraves existentes acerca de ser devida ou não a devolução de verbas recebidas pelos trabalhadores em decisão judicial desconstituída por ação rescisória, é de se considerar que a divergência nas recentes decisões acima colacionadas é um retrato das dificuldades no debate sobre o tema.

Muitos pontos devem ser colocados na balança: se por um lado, formalmente, a ação rescisória não pode ser ao final inócua, como bem ponderado pela I. Ministra Dora Maria da Costa, no julgamento do Recurso de Revista nº 526-64.2017.5.10.0002, por outro lado, e em uma realidade muito distante, um trabalhador, que recebe uma verba alimentar e de boa-fé, com base em uma decisão judicial, certamente, terá muita dificuldade, não apenas para entender os motivos de uma devolução, quanto para efetivamente conseguir lastro patrimonial para devolver os valores recebidos.

Imaginemos que, em sã consciência, nenhum trabalhador guardará o valor recebido em ação judicial trabalhista, à espera da prescrição do prazo para ação rescisória, com o receio do risco de daqui a 10, 15 ou 20 anos, ter que devolver tais valores, principalmente, porque o uso de tais verbas, via de regra, é para a própria subsistência desses trabalhadores.

Certamente, podemos concluir que o ainda não pacificado entendimento entre TST e STF, especialmente nas mais recentes decisões, gera incomensurável insegurança jurídica, e que a sedimentação da temática, tanto sob o ponto de vista constitucional como infraconstitucional é absortamente necessário.

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Referências

Curso de Direito do Trabalho Aplicado – Vol. 9 – Ed. 2017. Autor: Homero Batista Mateus da Silva. Editor: Revista dos Tribunais. https://proview.thomsonreuters.com/launchapp/title/rt/monografias/106225603/v3. Acesso em 06 de jul de 2021.

Supremo Tribunal Federal. STF. Processo: AR 1976. Disponível em: < http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=2511695>. Acesso em: 06 de jul de 2021.

Tribunal Superior do Trabalho. TST. Processo nº 526-64.2017.5.10.0002. Disponível em: http://aplicacao4.tst.jus.br/consultaProcessual/consultaTstNumUnica.do?consulta=Consultar&conscsjt=&numeroTst=526&digitoTst=64&anoTst=2017&orgaoTst=5&tribunalTst=&varaTst=. Acesso em 06 de jul. de 2021.

Tribunal Superior do Trabalho. TST. Processo nº 969-88.2017.5.10.0010. Disponível em: < http://aplicacao4.tst.jus.br/consultaProcessual/consultaTstNumUnica.do?consulta=Consultar&conscsjt=&numeroTst=969&digitoTst=88&anoTst=2017&orgaoTst=5&tribunalTst=10&varaTst=0010&submit=Consultar>. Acesso em 06 de jul. de 2021.

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Dannúbia Santos Sousa Nascimento
Advogada graduada pela Universidade Católica de Brasília – UCB. Especialista em Direito Processual Civil, pela Universidade de Santa Cruz do Sul/SC. Integrante da equipe do Petrarca Advogados.

Petrarca Advogados