Deslocalização do trabalho e teletrabalho transnacional

O local de execução de serviços sempre teve grande importância na definição das leis e normas coletivas aplicáveis ao trabalhador, parâmetro hoje desafiado pelo crescimento do trabalho virtual.

Em direito internacional privado, o critério clássico para a definição da lei de regência de um contrato internacional era o elemento de conexão lex loci executionis, ou seja, lei do local em que o serviço é executado.

Como já demonstramos em outros estudos2, esse critério, amparado em um único elemento do contrato (território)3, foi superado nos tratados e leis mais modernos, em que se contemplam outros mais flexíveis, chamados de funcionais pela doutrina. Aceita-se certo subjetivismo para privilegiar o melhor resultado.

Surgem assim novos conceitos como o de “lei de vínculos mais estreitos”, a admissão do fracionamento da lei de regência (a regência de partes do contrato por leis distintas passa a ser regra em determinadas situações), a valorização da autonomia da vontade (escolha da lei de regência pelas partes com certos limites) e a referência ao local habitual de prestação de serviços (em oposição ao mero local de prestação de serviços).

Com essa evolução, a lei aplicável ao contrato internacional de trabalho – assim entendido aquele com elementos de estraneidade, que potencialmente o conectam a mais de um país4 – não necessariamente será a do local da execução dos serviços, havendo muitas variantes. Contudo, o local ainda é relevante critério, especialmente para impor limites à eventual escolha da lei de regência pelas partes.

O Brasil pouco evoluiu nessa matéria. Abandonou o critério clássico com o cancelamento do Enunciado 207 do Tribunal Superior do Trabalho (2012) e ampliou a aplicação da Lei 7.064/82 a qualquer atividade, não apenas engenharia (2009).

Essa lei, criada no contexto de transferência em massa de brasileiros ao exterior para obras de engenharia civil (por isso conhecida como Lei Mendes Junior), faz distinção entre aqueles contratados no Brasil e transferidos (Capítulo II) e aqueles diretamente contratados por empresa no exterior (Capítulo III).

Na primeira hipótese privilegia a aplicação da lei mais favorável em relação a cada matéria, impondo dificílimo fracionamento das leis de regência5. Na segunda hipótese tem a arrogância de impor obrigações a empresas que sequer operam no país6. É uma lei sistematicamente desrespeitada em razão de seu anacronismo e inúmeras deficiências.

No ambiente doméstico, apesar de incumbir à União Federal legislar sobre direito do trabalho, o local de prestação de serviços é essencial para  definição do sindicato representativo e das normas coletivas aplicáveis (há monopólio de representação em determinada “base territorial”). São frequentes reclamações trabalhistas em que se discute a aplicação desta ou daquela norma coletiva quando o empregado transita por mais de uma localidade.

Na atualidade digital, essa preocupação com o território perdeu completamente o sentido. O trabalho se realiza virtualmente, em vários locais espalhados pelo país e até mesmo no exterior.

Há  mais de vinte anos o World Employment Report 2001 da OIT examinou os efeitos das ICT (information and communication tecnologies) no mundo do trabalho.

Das conclusões destacadas pelo relatório, sobressai que as ICT poderiam fragilizar o vínculo entre localização física e performance, o que teria implicações no modo como a duração do trabalho é tradicionalmente regulada, na forma como o contrato de emprego é administrado e no modo como as negociações coletivas estão estruturadas e administradas7.

Isso deixou de ser um prenúncio e se consolidou em diversos setores, aflorando com ainda maior intensidade após o início da pandemia do COVID-19.

Outrora as dificuldades estavam nos grupos de empregados em atividades móveis8, como os aeronautas e marinheiros, que perpassam diversos territórios no exercício da atividade, e os vinculados a atividades dispersas como jornalistas correspondentes, determinados artistas (vg. circenses), propagandistas e vendedores viajantes que se deslocam frequentemente. Conforme o critério europeu, essas hipóteses não revelam um local habitual, sendo, em princípio, aplicável a lei do local em que está o estabelecimento que contratou o trabalhador. Por sua vez, a Lei 7064/82 nada diz a respeito.

Esse dilema também surgia na transferência provisória9 e hoje, de forma muito contundente, desponta no teletrabalho, quando pouco importa o local da prestação de serviços.

Agora não mais se discute se o local de prestação de serviços é – ou não – o habitual. O conceito de local simplesmente perdeu importância diante do teletrabalho. Afinal, o local é virtual, etéreo, inefável.

O direito ainda não tem respostas claras para esses novos impasses, muito embora diversos fatores paralelamente estimulem o crescimento do fenômeno.

Países criaram vistos de trabalho específicos para quem deseja neles residir e trabalhar virtualmente em proveito de empresas estabelecidas no exterior (Antígua e Barbuda, Barbados, Bermudas, Costa Rica, Emirados Arabes Unidos, Estônia, Geórgia, Ilhas Cayman, Ilhas Maurício, Islândia etc).

Redes hoteleiras desenvolveram o conceito de workation (work and vacation), em que trabalho se mistura com descanso em locais paradisíacos como Aruba, em estadias de longo prazo. Um executivo brasileiro pode se hospedar por meses em um resort no Caribe e prestar serviços remotamente a seu empregador em S. Paulo.

Isso não ocorre apenas na iniciativa privada. O Conselho Nacional de Justiça, com a Resolução n. 298, de 22.10.2019, reconheceu “expressamente autorizado o teletrabalho para os servidores do Poder Judiciário no exterior desde que no interesse da Administração”.

Essa é a face hipster do teletrabalho transnacional.

Na outra ponta, FRANCISCO DE ASSIS BARBOSA JUNIOR10 destaca o maior desequilíbrio na equação capital versus trabalho:

“A demanda por metamorfose do direito laboral atinge direta­mente os teletrabalhadores, notadamente transnacionais. Com a ausência de regulamentação clara e abrangente, este mercado ten­de a autorregular-se, impondo sérios riscos à segurança dos traba­lhadores vias meios telemáticos internacionais, os quais passarão a suportar os riscos da atividade econômica das empresas, ficando à mercê dos ditames do mercado, apenas laborando e gozando de algum direito quando este for favorável ao contratante patronal.

Por outro lado, o tamanho do mercado internacional de teletra­balhadores atinge um nível jamais constatado na história humana, pois abarca obreiros de todo o globo, em face da possibilidade de se mourejar praticamente em qualquer lugar. Destarte, a assimetria das relações jurídicas travadas entre empregados e empregadores apresenta-se ainda mais gritante neste caso, onde a abundância de mão-de-obra é quase infinita, o que desequilibra demasiadamente a relação jurídica em favor das empresas.”

Além da mera redução de custos com mão-de-obra, há outros interesses atrelados unicamente ao processo produtivo, como bem aponta MANUEL MARTÍN PINO ESTRADA11:

“As razões para explicar a ida ao teletrabalho transfronteiriço são diversas, desde a procura de um perfil determinado, até a possibilidade de entrar em outros mercados sem a necessidade de criar filiais nem de deslocar trabalhadores. Mas a principal causa é obter vantagens competitivas, obtendo um benefício das diferenças salariais e da carga social que existem nos diferentes países. Em outros casos, o empresário procura uma maior operatividade da empresa, aproveitando-se dos fusos horarios, fazendo que se acesse aos terminais da empresa enquanto o pessoal interno estiver descansando, desta forma, os computadores centrais ficariam funcionando dia e noite, ou seja, as 24 horas do dia.

Este tipo de deslocamento permite que as empresas ofereçam mais emprego, tendo um maior número de empregados a serem incorporados e com a possibilidade de que, trabalhadores com dificuldade de acesso por motivos geográficos e despesas no transporte possam conseguir ofertas de trabalho, provocando uma “exportação de emprego” a países em desenvolvimento, colocando um freio na pressão migratória nos países desenvolvidos e colaborando com a melhoria dos métodos tecnológicos, da produção e do trabalho, e claro está, estaria melhorando-se a formação profissional dos trabalhadores.”

Há setores da economia brasileira em que mão-de-obra qualificada ou altamente qualificada – muitas vezes escassa – passa a ser contratada por empresas estrangeiras que aqui não estão.

Além dos problemas relacionados à eventual desproteção do trabalhador, essa mão-de-obra barata para a empresa estrangeira em razão da vantagem cambial pode fazer falta aos tomadores locais.

Surgem também notícias de contratação sem reconhecimento de vínculo empregatício ou qualquer proteção trabalhista, por intermédio de falsas pessoas jurídicas, como se se tratasse de mera relação comercial.

Tudo está a revelar a urgência de enfrentamento do tema por normas domésticas e especialmente internacionais.

As peças simplesmente não se encaixam no modelo atual de solução de conflito de leis no espaço. Bastam alguns exemplos.

A rigor, para os fins do Capítulo II da Lei 7.064/82, esse teletrabalhador não foi transferido ao exterior. Também não foi contratado por empresa estrangeira para trabalhar no exterior, conforme regras do Capítulo III. A empresa estrangeira, por outro lado, se aqui também não estiver sediada ou não dispor de representante legal, simplesmente não conseguirá cumprir com as obrigações trabalhistas brasileiras mesmo se assim desejar.

No modelo da União Européia12 também existe dificuldade de aplicação dos critérios tradicionais, mas há sempre a válvula de escape da “lei dos vínculos mais estreitos”, muito embora com grande subjetivismo13.

Evidentemente, ao lado da regulamentação estatal, as empresas também podem contribuir para a evolução desse modelo em compliance com questões sociais e tributárias, reforçando a relevância do chamado padrão ESG.

Essa ressalva se conecta com outro texto desta coluna14 e permite concluir: a crescente consciência de responsabilidade social não se concilia com a exploração de lacunas normativas em benefício único das empresas.

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1 FERNANDES, Millôr. Hai-Kais. Porto Alegre: L&PM Pocket, 1997. p. 30.

2 Exemplificativamente:

PERES, Antonio Galvão. Contrato internacional de trabalho: novas perspectivas. S. Paulo: LTr, 2004.

PERES, Antonio Galvão. Contrato internacional de trabalho: acesso à justiça. Conflitos de jurisdição e outras questões processuais. Rio de Janeiro: Elsevier/Campos Jurídico, 2009.

PERES, Antonio Galvão. Trabalho em navios. O método funcionalista e a superação dos elementos de conexão para definição da lei aplicável a contratos internacionais. Revisitando a ‘lei do pavilhão’. Revista LTr. v. 83. nº 5. S. Paulo: LTr, maio de 2019, p. 563-577.

3 No modelo clássico, são identificados os elementos do contrato e apenas um é escolhido para indicar a lei aplicável. É o chamado elemento de conexão. A escolha de um único elemento e o desprezo aos demais frequentemente enseja soluções injustas, o que tem fomentado a revisão desse modelo clássico, como se constata no direito norte-americano, nas normas da CE – Comunidade Europeia e em convenções mais recentes da OEA – Organização dos Estados Americanos.

4 Serve de exemplo esta passagem de outro estudo:

“A internacionalização do contrato de emprego reclama diálogo do direito do trabalho com o direito internacional privado (DIP), ramo ao qual incumbe solucionar os conflitos de leis no espaço.

Há diversas situações contratuais vinculadas a mais de um país e, em consequência, a mais de um sistema jurídico.

Eis exemplo didático: contrato de trabalho (natureza jurídica) celebrado entre brasileiro e empresa norueguesa (nacionalidades distintas), em solo norte-americano (local da celebração), para execução na Argentina (local da execução) e com eleição da lei canadense (autonomia da vontade).

Nesse exemplo, o contrato está potencialmente conectado a diversos países, exigindo critérios técnicos para definição da lei aplicável.” (PERES, Antonio Galvão. Trabalho em navios. O método funcionalista e a superação dos elementos de conexão para definição da lei aplicável a contratos internacionais. Revisitando a ‘lei do pavilhão’. Revista LTr. v. 83. nº 5. S. Paulo: LTr, maio de 2019, p. 563.)

5 Art. 3º – A empresa responsável pelo contrato de trabalho do empregado transferido assegurar-lhe-á, independentemente da observância da legislação do local da execução dos serviços:

I – os direitos previstos nesta Lei;

II – a aplicação da legislação brasileira de proteção ao trabalho, naquilo que não for incompatível com o disposto nesta Lei, quando mais favorável do que a legislação territorial, no conjunto de normas e em relação a cada matéria.

Parágrafo único. Respeitadas as disposições especiais desta Lei, aplicar-se-á a legislação brasileira sobre Previdência Social, Fundo de Garantia por Tempo de Serviço – FGTS e Programa de Integração Social – PIS/PASEP.

6 Art. 12 – A contratação de trabalhador, por empresa estrangeira, para trabalhar no exterior está condicionada à prévia autorização do Ministério do Trabalho.(Regulamento)

Art. 13 – A autorização a que se refere o art. 12 somente poderá ser dada à empresa de cujo capital participe, em pelo menos 5% (cinco por cento) pessoa jurídica domiciliada no Brasil.

Art. 14 – Sem prejuízo da aplicação das leis do país da prestação dos serviços, no que respeita a direitos, vantagens e garantias trabalhistas e previdenciárias, a empresa estrangeira assegurará ao trabalhador os direitos a ele conferidos neste Capítulo.

7 INTERNATIONAL LABOUR ORGANIZATION. (ILO), ILO Activities on the social dimension of globalization: Synthesis report. Geneva: 12 July 2002. Disponível em: .

8 Essa terminologia (activité mobile et activité éparse) é empregada por COURSIER, Philippe. Le conflit de lois en matière de contrat de travail: étude en droit international privé français. Paris: Librairie Générale de Droit et de Jurisprudence, 1993. P. 106-111.

9 RONALDO LIMA DOS SANTOS distingue os efeitos das transferências provisória e definitiva para o direito coletivo. Na primeira hipótese, o empregado “continuará vinculado ao sindicato profissional de origem e às normas coletivas por ele pactuadas”. Na segunda, “a aplicação da norma coletiva do novo local de prestação de serviços opera-se pelo simples fato de o empregado passar a laborar em localidade sujeita à representação de outro sindicato”, inclusive se mantiver o mesmo domicílio (SANTOS, Ronaldo Lima dos. Teoria das normas coletivas. S. Paulo: LTr, 2007. P. 210-211).

10 BARBOSA JUNIOR, Francisco de Assis. O direito do trabalho líquido e o teletrabalho transnacional: demanda por regulamentação efetiva. In: BARBOSA JUNIOR, Francisco de Assis; NASCIMENTO, Fábio Severino (org.). Diálogos do direito hodierno: estudos em homenagem ao I Congresso Internacional Europeu Brasileiro de Direito do Trabalho em Campina Grande. Campina Grande: UEPB, 2019. p. 86.

11 ESTRADA, Manuel Martín Pino. O teletrabalho transfronteiriço no Direito brasileiro e a globalização.

12 Acerca da realidade portuguesa, ensinam Suzana Fernandes da Costa e Conceição Soares:

“No que respeita à lei aplicável à relação laboral em que a entidade empregadora se localiza em Portugal e o trabalhador trabalha remotamente a partir do estrangeiro, o Código do Trabalho é omisso. No entanto, a Convenção de Roma relativa à lei aplicável às obrigações contratuais, estabelece no seu artigo 3.º que o contrato se rege pela lei escolhida pelas partes e que essa escolha deve ser expressa ou resultar de modo inequívoco das disposições do contrato ou das circunstâncias da causa.

Por sua vez, o artigo 6.º, n.º 2 da Convenção de Roma, prevê que na falta de escolha pelas partes da lei aplicável, o contrato de trabalho é regulado:

a) Pela lei do país em que o trabalhador, no cumprimento do contrato, presta habitualmente o seu trabalho, mesmo que tenha sido destacado temporariamente para outro país, ou b) Se o trabalhador não prestar habitualmente o seu trabalho no mesmo país, pela lei do país em que esteja situado o estabelecimento que contratou o trabalhador, a não ser que resulte do conjunto das circunstâncias que o contrato de trabalho apresenta uma conexão mais estreita com um outro país, sendo em tal caso aplicável a lei desse outro país.

Há, no entanto, que ter em conta que a escolha pelas partes da lei aplicável ao contrato de trabalho, não pode ter como consequência privar o trabalhador da proteção que lhe garantem as disposições imperativas da lei que seria aplicável, na falta de escolha, por força do nº 2 mesmo artigo e a que nos referimos atrás.” (COSTA, Suzana Fernandes da; SOARES, Conceição. Teletrabalho a partir do estrangeiro – algumas questões em torno da fiscalidade, segurança social e legislação laboral. RED – Revista Eletrónica de Direito. Fevereiro de 2021. N. 1 (vol. 24). Faculdade de Direito da Universidade do Porto. Porto).

13 Em verdade, os critérios da Convenção de Roma de 1980 foram posteriormente incorporados ao Regulamento CE 593/2008.

Conforme modelo europeu, a regra geral é a autonomia da vontade, mas, independentemente da escolha das partes, se houver um local habitual de prestação de serviços, incidem as normas imperativas desse local; não havendo local habitual, aplicam-se as do local em que está o estabelecimento que contratou o trabalhador.

A norma ressalva ao final, genericamente, a teoria da lei dos vínculos mais estreitos, caso não coincida com a indicada pelos critérios objetivos. Trata-se de uma válvula de escape para assegurar justiça ao caso concreto.

A prática revela que sequer os critérios objetivos são precisos. De qualquer forma, o grande mérito dos critérios é preservar a unidade do contrato e a prevalência das normas do chamado “local habitual”.

14 ROBORTELLA, Luiz Carlos Amorim; PERES, Antonio Galvão. Economia digital e padrão ESG: O capitalismo colaborativo. Coluna quinzenal O Direito do Trabalho nos Negócios.

 

Link: https://www.migalhas.com.br/coluna/direito-trabalhista-nos-negocios/361957/deslocalizacao-do-trabalho-e-teletrabalho-transnacional

Petrarca Advogados