Direito ao silêncio parcial no processo penal

No último dia 5 de abril, ao julgar o HC nº 703.978, de relatoria do ministro Olindo Menezes, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) enfrentou questão jurídica que tem sido frequente objeto de disputa na prática forense brasileira: o direito ao silêncio parcial do acusado.

Narra-se no acórdão que um indivíduo, acusado da prática do crime de homicídio, quando de seu interrogatório na primeira fase do procedimento do Júri, manifestou vontade de não responder às perguntas formuladas pelo magistrado, mas sim responder às perguntas formuladas pela defesa. No entanto, sob o argumento de que “no interrogatório, se o acusado opta por não responder as perguntas do magistrado, não há porque serem formulados esclarecimentos pela defesa por hão (sic) haver o que esclarecer, segunda (sic) inteligência do artigo 188 do CPP”[1], o magistrado encerrou o ato precocemente. Portanto, para o magistrado não haveria direito ao silêncio parcial do acusado, vale dizer, ou responde a todas as perguntas ou não responde nenhuma.

A defesa impetrou habeas corpus ao Tribunal de segunda instância argumentando que houve nulidade do interrogatório pela violação do direito de autodefesa, porém o Tribunal manteve a decisão do magistrado, argumentando que (i) o magistrado fundamentou sua decisão corretamente, nos termos do artigo 188 do CPP e (ii) admitir o que queria a defesa, um interrogatório em que o acusado somente responderia às perguntas da defesa, desconfiguraria o ato do interrogatório, tornando-o mera entrevista, que poderia ser juntada aos autos[2]. Diante desta decisão, o referido Habeas Corpus foi impetrado ao STJ, que corretamente decidiu que, de acordo com o artigo 186 do CPP, “o interrogatório, como meio de defesa, permite a possibilidade de responder a todas, nenhuma ou a algumas perguntas direcionadas ao acusado, que tem direito de poder escolher a estratégia que melhor lhe aprouver”[3].

O exercício parcial do direito ao silêncio é um dos muitos temas sensíveis que envolvem o direito à não autoincriminação, também conhecido pelo brocardo nemo tenetur se detegere[4] e que encontra previsão constitucional (art. 5º, LXIII, Constituição Federal), supranacional (artigo 8, n. 2, g, da Convenção Americana de Direitos Humanos, promulgada pelo Decreto nº 678/92) e infraconstitucional (arts. 186, 198, 479, Código de Processo Penal). A questão que aqui se coloca, porém, é: dentro de um mesmo ato ou fase processual[5], o reconhecido direito ao silêncio compreende só a situação de silêncio absoluto, em que o acusado não responde pergunta alguma, ou também a situação de silêncio parcial, em que o acusado pode escolher quais perguntas responderá?

Não há dúvida de que, no sistema romano-germânico[6], a resposta é que o direito ao silêncio compreende tanto um permanecer integralmente calado como também responder somente às perguntas que desejar. Problema diverso, não tratado no acórdão em comento, e que ficará reservado a outro momento, diz respeito às consequências de caráter probatório relativas a este silêncio parcial (possibilidade de valorar negativamente eventuais inconsistências no exercício seletivo do direito ao silêncio)[7].

Eis os argumentos a favor da existência e legitimidade do direito ao silêncio parcial no ato do interrogatório:

Em primeiro lugar, um argumento de natureza lógica (a fortiori): se é permitido ao acusado o mais, que é negar-se a responder todas as perguntas, daí exatrai-se que é permitido o menos, que é responder a algumas das perguntas somente (o direito ao silêncio parcial seria um minus em relação ao direito ao silêncio)[8]. Este argumento a fortiori é reforçado pelo fato de que, inclusive à testemunha, que tem os deveres de prestar depoimento (art. 206, primeira parte, CPP) e de dizer a verdade (art. 203, CPP c.c. artigo 342, CP)[9], é reconhecido o direito ao silêncio parcial, que se fundamenta no fato de que o direito à não autoincriminação é um direito de todo cidadão[10], de modo que representaria violação ao nemo tenetur obrigar a testemunha a responder a perguntas cujas respostas lhe pudessem incriminar[11]. Nessa hipótese, deve-se conceder à testemunha a possibilidade de permanecer (parcialmente) em silêncio. Para compatibilizar esta situação com os deveres de prestar depoimento e de dizer a verdade, o direito ao silêncio da testemunha restringe-se às perguntas de potencial autoincriminatório, não havendo a faculdade de escolher livremente a quais indagações irá responder[12]. Não são raros os casos em que todas as perguntas dirigidas à testemunha têm o potencial de incriminá-la se respondidas com a verdade, caso em que se pode obter, do ponto de vista prático, um direito ao silêncio completo[13].[14]

Ora, se à testemunha, que tem o dever de prestar depoimento e falar a verdade, se reconhece a possibilidade de exercer silêncio parcial, com maior razão esse silêncio parcial deve ser reconhecido ao imputado ou acusado, que sequer tem essas obrigações. Na realidade, tanto o imputado quanto a testemunha têm direito ao silêncio parcial. A diferença encontra-se na amplitude do seu exercício, que é evidentemente maior no caso do imputado e menor no da testemunha.

Em segundo lugar, um argumento de exegese da lei: a redação do artigo 186 do CPP permite extrair a conclusão de que o acusado, em seu interrogatório, tem direito ao silêncio parcial[15], pois afirma que “… o acusado será informado pelo juiz, antes de iniciar o interrogatório, do seu direito de permanecer calado e não responder perguntas que lhe forem formuladas”. Se o direito ao silêncio compreendesse somente o ficar absolutamente calado, a parte destacada do texto legal seria supérflua. Porém, o dispositivo acrescenta ao direito de permanecer calado um segundo direito que é o de não responder perguntas formuladas. É importante mencionar, ainda, que o dispositivo legal não fala que o direito do acusado é de “não responder as perguntas”, mas sim afirma que o direito é de “não responder perguntas”, reforçando a ideia de que as perguntas que não serão respondidas ao longo do interrogatório não são perguntas previamente determinadas, mas sim serão parte da escolha do acusado[16]. Não se pode esquecer, ainda, que o parágrafo único deste dispositivo afirma que o silêncio não pode ser interpretado em prejuízo da defesa e, como bem destacou o STJ no acórdão mencionado, exigir que o acusado escolha entre responder tudo ou não responder nada significa que o direito ao silêncio “foi utilizado em prejuízo da defesa”[17].

Em terceiro lugar, um argumento de natureza material: o interrogatório é pacificamente reconhecido como ato de defesa do acusado (mais especificamente é um dos momentos de exercício da autodefesa)[18], razão pela qual pode ser exercido por ele como bem entender[19], tendo em vista o direito constitucional à ampla defesa (artigo 5º, inc. LV, CF). Ao acusado é permitido, em seu interrogatório, não comparecer, fazer afirmações falsas, narrar sua versão dos fatos, não se ater aos termos das perguntas, se calar integralmente[20]. Logo, não há fundamento para afirmar que o acusado não pode escolher as perguntas que pretende responder. Para que a ele seja reconhecido um exercício amplo da autodefesa, não é possível obrigá-lo a escolher entre responder todas as perguntas ou não responder nenhuma.

O argumento utilizado pelo magistrado no caso sob comento, de que o artigo 188 do CPP indica que o interrogatório é ato privativo do juiz, não socorre a negativa do direito ao silêncio parcial. Ainda que fosse possível interpretá-lo desta forma, o dispositivo não autoriza o magistrado a indeferir perguntas somente poque o acusado, antes, exerceu seu direito ao silêncio. Ao contrário, o dispositivo é claro ao afirmar que, após proceder ao interrogatório, as partes poderão indicar esclarecimentos remanescentes, de modo que o juiz formulará as perguntas que entender pertinentes e relevantes. Ora, conjugando este dispositivo com o art. 186 do CPP, pode-se dizer, na verdade, que há um reforço do direito ao silêncio parcial, pois durante o interrogatório, a ser presidido pelo juiz, o acusado poderá permanecer calado. Ao final deste, o juiz deverá indagar as partes sobre esclarecimentos remanescentes a respeito de fatos, ou seja, não há necessidade de que os esclarecimentos tenham relação com algo que foi dito no interrogatório, mas sim aos fatos apurados no processo. Diante da existência de esclarecimentos, o juiz poderá indeferir perguntas impertinentes ou irrelevantes, mas não poderá indeferi-las somente porque o acusado, antes, exerceu o seu direito ao silêncio. Vale dizer, as perguntas das partes não se tornam irrelevantes ou impertinentes só porque o acusado, antes, exerceu seu direito ao silêncio, do contrário estar-se-ia interpretando o silêncio em prejuízo da defesa, o que é expressamente vedado pelo parágrafo único do artigo 186 do CPP.

Não há dúvida, portanto, como bem reconheceu o STJ no mencionado acórdão, que o direito ao silêncio do investigado e do acusado compreende não só um silêncio absoluto, em que pode deixar de responder a todas as perguntas, como também um silêncio parcial, em que é possível escolher as perguntas que quer responder. Ademais, importante frisar que, para o exercício do direito ao silêncio, total ou parcial, o investigado ou o acusado, diversamente da testemunha, não precisa demonstrar em que medida as respostas às perguntas podem representar autoincriminação e não é necessário que o juiz se convença deste caráter autoincriminatório.

[1] P. 05 do acórdão.
[2] P. 05-06 do acórdão.
[3] P. 07 do acórdão.
[4] Nesse sentido, destaca Lopes Jr. que “O direito ao silêncio é apenas uma manifestação de uma garantia muito maior, insculpida no princípio nemo tenetur se detegere” (Lopes Jr., Aury. Direito processual penal [e-book], 17 ed., São Paulo, 2020, p. 713).
[5] Não se ignora aqui que existe uma segunda modalidade de direito ao silêncio parcial, na qual há o exercício do silêncio durante uma fase ou ato processual e declaração em outra fase ou ato (p. ex.: silêncio durante o inquérito policial e declaração no interrogatório perante o juiz), porém suas peculiaridades e problemas não serão aqui abordadas. Para um problema desta modalidade de silêncio parcial, cf. Roxin, Claus. Por uma proibição de valorar a prova nos casos de omissão do dever de informação qualificada, trad. Alaor Leite, In. Roxin, Novos estudos de Direito Penal, Alaor Leite (org.), São Paulo, 2014.
[6] Distintamente dos Estados Unidos, por exemplo, onde o réu, uma vez que decide dar sua versão dos fatos, não pode se negar a responder às perguntas do acusador no âmbito do cross examination e tem o dever de dizer a verdade, cf. Fitzpatrick v. United States, 178 U.S. 304 (1900); Sawyer v. United States, 202 U.S. 150 (1906); Powers v. United States, 223 U.S. 303 (1912); ver também Brown v. United States, 356 U.S. 148 (1958).
[7] Para a diferença entre a existência e legitimidade do direito ao silêncio parcial e suas consequências probatórias, cf. Pacelli, Eugênio, Curso de processo penal [e-book]. 24 ed., São Paulo, 2020, p. 486.
[8] Kölbel, Ralf. Selbstbelastungsfreiheiten: Der nemo-tenetur Satz im materiellen Strafrecht, Berlin, 2006, p. 38.
[9] Salvo nas hipóteses previstas na segunda parte do art. 206 (ascendentes, descendes, cônjuge, etc.) e no art. 207 (sigilo profissional).
[10] O STF já constatou a amplitude deste direito, ver. HC 79.812-8/SP, Tribunal Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, j. 08.11.2000. Também destaca esta amplitude, Queijo, Maria Elizabeth. O Direito de não produzir prova contra si mesmo: o princípio nemo tenetur se detegere e suas decorrências no processo penal. 2 ed., São Paulo, 2012,, p. 239.
[11] Rogall, Klaus. Der Beschuldigte als Beweismittel gegen sich selbst: Ein Beitrag zur Geltung des Satzes „Nemo tenetur seipsum prodere“ im Strafprozess, Berlim, 1977, p. 62; Cf. a respeito o estudo de Dias Neto, Theodomiro. O direito ao silêncio: tratamento nos direitos alemão e americano, Revista Brasileira de Ciências Criminais 19 (1997), p. 921 ss. No mesmo sentido, Queijo, Maria Elizabeth. op. cit., p. 239-240 e Lopes Jr., Aury. op. cit., p. 715.
[12] No ordenamento jurídico brasileiro não há previsão expressa do direito ao silêncio parcial da testemunha como no Código de Processo Penal alemão (§ 55 StPO. “Direito de deixar de prestar informações. (1) Cada testemunha pode recursar-se a responder perguntas, cujas respostas representariam a ela ou a alguém elencado no §52, n. 1, como parente, um risco de ser processado por um crime ou contravenção. (2) A testemunha deve ser instruída sobre seu direito à recusa de prestar informações” – tradução livre), mas ele já vem sendo reconhecido na jurisprudência dos Tribunais Superiores (STF, HC 73.035-3/DF, Tribunal Pleno, Rel. Min. Carlos Velloso, j. 13.11.1996; STF, HC 79.244-8/DF, Tribunal Pleno, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. 23.02.2000; STF, HC 79.812-8/SP, Tribunal Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, j. 08.11.2000; STF, Ag. Reg. no RMS 34.739, 2ª T., Rel. Min. Gilmar Mendes, j. 25.05.2019; STJ, RHC 131.030/SP, 5ª T., Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, j. 03.11.2020; STJ, HC 688.699, Decisão Monocrática, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, DJe 24.08.2021). Na doutrina, com outras referências, Marteleto Filho, Wagner. O direito à não autoincriminação no Processo Penal Contemporâneo, Belo Horizonte, 2012, p. 77.
[13] Na nomenclatura alemã, um direito de deixar prestar determinadas informações (Auskunftsverweigerungsrecht) transforma-se praticamente no direito a deixar de testemunhar (Zeugnisverweigerungsrecht), cf. Roxin/Schünemann, Strafverfahrensrecht, 29 ed., Munique, 2017, § 26 Nm. 33.
[14] Essa questão tem grande importância no âmbito de Comissões Parlamentares de Inquérito. A respeito, com várias referências da jurisprudência brasileira, cf. Teixeira, Adriano/Campana, Felipe. Direito ao silêncio parcial no Processo Penal e em CPI. Breves considerações à luz de recentes decisões do STF e do STJ, Jota (Penal em Foco), 15/09/2021 (https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/penal-em-foco/direito-ao-silencio-parcial-no-processo-penal-e-em-cpi-15092021).
[15] Feldens, Luciano. O direito de defesa: A tutela jurídica da liberdade na perspectiva da defesa penal efetiva, 2 ed., Porto Alegre, 2021, p. 105. No mesmo sentido, Queijo, Maria Elizabeth. op. cit., p. 248-249.
[16] Próximo, cf. Pacelli, Eugênio. op. cit., p. 486.
[17] P. 06 do acórdão.
[18] Nesse sentido, cf. Pacelli, Eugênio. op. cit., p. 478 e Lopes Jr., Aury. op. cit., p. 706 e ss. A natureza de ato de defesa do interrogatório já foi reconhecida, inclusive, pelos Tribunais Superiores. Ilustrativamente, cf. STF, HC n. 94601, 2ª T., Min. Rel. Celso de Mello, j. 04.08.2009 e STJ, AgRg no REsp n. 1.458.725, 5ª T., Min. Rel. Felix Fischer, j. 04.10.2016.
[19] A possibilidade de que o investigado e o acusado exerçam o direito de autodefesa contido no interrogatório como bem entenderem é reforçada pelo entendimento atual do Supremo Tribunal Federal a respeito da impossibilidade de efetuar condução coercitiva do imputado para seu interrogatório (STF, ADPF n. 444, Tribunal Pleno, Min. Rel. Gilmar Mendes, j. 14.06.2018). No mesmo sentido, Pacelli, Eugênio. op. cit., p. 478.
[20] O exercício do direito ao silêncio, no interrogatório, seria a realização da autodefesa passiva ou negativa, conforme esclarece Pacelli, Eugênio. op. cit., p. 484. No mesmo sentido, Lopes Jr., Aury. op. cit., p. 706.

 

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