Judicialização de atividade de fretamento de ônibus divide tribunais no país

Em 2017, surgiu no Brasil uma startup com a promessa de oferecer viagens de ônibus de forma mais rápida e barata. Por meio de uma plataforma digital, a empresa Buser conecta passageiros e viações, para permitir que pessoas interessadas em uma mesma viagem na mesma data fretem um ônibus executivo. Porém, o modelo de transporte passou a ser amplamente contestado por outras empresas do setor, o que levou a diversas disputas judiciais nos últimos anos.

A Buser atua nas modalidades de marketplace e fretamento coletivo. Na primeira, vende passagens em parceria com as viações tradicionais reguladas pelas rodoviárias, e funciona como um meio de intermediação com passageiros. Já na segunda, a viagem é feita por empresas privadas de fretamento e os custos são divididos entre todos os passageiros. Este modelo é comumente comparado ao da Uber, e ao mesmo tempo é o mais atacado pelas concorrentes.

A Associação Brasileira das Empresas de Transporte Terrestre de Passageiros (Abrati), responsável por diversas ações judiciais anti-Buser, argumenta que o transporte rodoviário de passageiros é um serviço público por definição constitucional, e por isso depende de autorização do poder público. “Ainda que se considere transporte coletivo por fretamento um serviço privado, ele pressupõe a observância da legislação e das normas das agências reguladoras, o que a Buser e suas parceiras efetivamente não observam”, diz a Abrati à ConJur.

Assim, a Buser representaria uma concorrência desleal às empresas que seguem as normas da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT). Segundo a Abrati, a startup ofereceria os mesmos serviços de transporte rodoviário, mas sem recolher ICMS sobre o valor integral das passagens (inciso V do artigo 12 da Lei Kandir e artigo 1º do Regulamento do ICMS), sem operar linhas de pouco fluxo (todas criadas pela ANTT a partir de estudos prévios e atendidas pelas empresas regulares), sem respeitar a frequência mínima (Resolução 4.770/2015 da ANTT) e sem garantir gratuidade a idosos (Estatuto do Idoso e Resolução 1.692/2006 da ANTT), crianças (Resoluções 1.383/2006 e 1.922/2007 da ANTT), jovens carentes (Resolução 5.063/2016 da ANTT) e pessoas com deficiência (Lei 8.899/1994).

Já a Buser alega ser uma alternativa “mais confortável, segura e barata” para os clientes. A empresa diz que os questionamentos são “o preço de desbravar um mercado novo” e argumenta que “a regulação estatal não avança na mesma velocidade das inovações”.

Com a intensa judicialização, as empresas tradicionais já tiveram decisões contrárias a serviços da Buser em mais estados. Por outro lado, a Buser concentra um volume maior de decisões favoráveis em alguns dos estados mais populosos, como São Paulo e Rio de Janeiro.

Em certas decisões, magistrados estabeleceram a proibição de viagens fretadas da Buser em estados inteiros. No entanto, como também funciona na modalidade de marketplace, a empresa argumenta que nenhuma delas impede suas atividades no todo. Além disso, muitas das decisões se referem a empresas parceiras, e não à plataforma em si.

A Associação Brasileira dos Fretadores Colaborativos (Abrafrec), representante de muitas das empresas que utilizam a plataforma da Buser, também diz que as companhias tradicionais tentam barrar a “competição saudável de mercado” e “tirar o direito do consumidor de ir e vir utilizando um serviço moderno, de qualidade e com preços mais acessíveis”. A Abrafrec indica que tanto as plataformas de intermediação quanto as empresas de transporte fretado pagam impostos e estão sujeitas à fiscalização de segurança prevista na legislação.

Buser barrada
O estado com o retrospecto mais desfavorável à Buser é Minas Gerais. Até mesmo a viagem inaugural da plataforma, em 2017, foi interrompida por ordem da Justiça Federal. A liminar só foi derrubada por sentença no ano seguinte.

Na mesma época, a ANTT tentou impedir o fretamento da Buser nos casos em que o destino dos passageiros não fosse o mesmo e pré-definido. O Tribunal Regional Federal da 1ª Região chegou a desautorizar as operações do aplicativo em Minas Gerais, mas a circulação dos ônibus mais tarde foi liberada.

No final do último ano, a Assembleia Legislativa de Minas Gerais aprovou uma lei que restringe o fretamento de viagens de passageiros no estado. A norma foi vetada pelo governador Romeu Zema (Novo), mas o veto foi derrubado pelos deputados estaduais em novembro.

A Federação de Serviços de Minas Gerais (Feserv-MG) questiona a lei por meio de ação direta de inconstitucionalidade no Tribunal de Justiça estadual. A autora alega que a norma impediria a entrada efetiva no mercado do novo modelo de prestação de serviços de intermediação por meio de fretamento compartilhado, em violação à livre iniciativa. Recentemente, o Ministério Público se manifestou de forma favorável à suspensão liminar da eficácia da lei.

No último mês de dezembro, já com a lei estadual em vigor, a 3ª Vara da Fazenda Pública e Autarquias de Belo Horizonte chegou a autorizar, em liminar, uma parceira da Buser a usar plataformas do tipo sem intervenção do Departamento de Edificações e Estradas de Rodagem de Minas Gerais (DER-MG). Contudo, no final de janeiro, a decisão foi revogada. Antes da proibição, também chegaram a ser proferidas algumas liminares favoráveis a empresas parceiras, tanto na Justiça Federal quanto no TJ-MG.

No Espírito Santo, estado vizinho, a situação da plataforma também é desvantajosa. Além de decisões contrárias a uma parceira, a própria Buser foi proibida de divulgar, comercializar e promover viagens de qualquer trecho rodoviário em caráter regular. Em dezembro do último ano, após o descumprimento reiterado da ordem judicial, a Justiça estadual determinou a penhora online de R$ 45 milhões da empresa. A Buser alega estar cumprindo a decisão e informou que iria recorrer.

A plataforma também está proibida de prestar suas atividades sem autorização da ANTT em toda a região Sul. As decisões foram tomadas em ações movidas por federações e sindicatos do transporte rodoviário de passageiros dos três estados, e mais tarde mantidas pelo TRF-4. Para o desembargador Rogerio Favreto, relator dos casos, a tendência é a adequação da legislação à nova modalidade, mas por enquanto é necessário “aplicar a legislação vigente e obstar o exercício irregular da atividade atacada”.

Os serviços da Buser também vêm encontrando obstáculos em estados do Nordeste. Recentemente, a Vara Federal Cível e Criminal de Paulo Afonso (BA) reiterou a proibição da empresa a vender passagens para rotas em toda a Bahia. Antes disso, no último ano, houve uma liminar da Justiça Federal baiana favorável a uma empresa parceira. Há ainda decisão contrária à atuação de uma parceira da Buser no Ceará. O recurso está pendente de análise pelo TJ-CE.

Circuito fechado
Se nem sempre é possível barrar toda a atividade das plataformas, a solução, muitas vezes, é impor o respeito ao chamado circuito fechado — ou seja, a manutenção do mesmo grupo de passageiros nas viagens de ida e volta. A norma é classificada pela Buser como ultrapassada, anacrônica, protecionista e anticoncorrencial.

No Distrito Federal, há pelo menos duas decisões liminares que impedem a Buser e empresas parceiras de atuarem no circuito aberto — isto é, sem que os passageiros sejam os mesmos na ida e na volta —, com recursos ainda pendentes de análise pelo TRF-1. Em outras duas decisões, a Justiça Federal do DF determinou que as autoridades liberem as viagens intermediadas pela Buser e promovidas por uma parceira, desde que feitas no circuito fechado. Além disso, duas decisões (uma liminar e uma sentença) já liberaram veículos apreendidos de parceiras.

A Buser lembra que a Frente Intensiva de Avaliação Regulatória e Concorrencial (Fiarc) do Ministério da Economia sugeriu, no último mês de janeiro, a extinção do circuito fechado, já que a norma foi estabelecida muito antes da criação dos aplicativos. No último ano, o Ministério do Turismo também defendeu o circuito aberto.

Buser liberada
Em São Paulo, há muitas decisões a favor do funcionamento do modelo da Buser. Na Justiça Federal, por exemplo, isso ocorre em ações movidas ou não pela Abrati. E não apenas na primeira instância, mas também no TRF-3.

Pelo menos outras duas decisões — uma delas mantida em segundo grau — autorizam empresas parceiras a operar na plataforma, mas, ainda assim, limitadas ao circuito fechado. Outras duas autorizam parceiras a operar especificamente no trecho São Paulo/Paraná.

Ainda, empresas parceiras já conseguiram inúmeras liminares da Justiça Federal paulista — algumas confirmadas em sentença ou pelo TRF-3 — para garantir a liberação de veículos apreendidos no estado sem o pagamento de despesas de transbordo, estadia ou remoção.

Já na Justiça estadual, casos do tipo chegaram diversas vezes ao TJ-SP, que manteve as atividades da Buser e parceiras, além de liberar veículos apreendidos. Em um deles, a corte considerou que a legislação do transporte de passageiros não se aplicaria à Buser, já que seu modelo de intermediação não permitiria classificá-la como transportadora.

Mesmo assim, o serviço não passa impune no estado. A partir do final de 2020, a Agência de Transporte do Estado de São Paulo (Artesp) passou a promover várias autuações contra parceiras da Buser. O TJ-SP já manteve algumas dessas autuações, e ainda validou o trabalho da Artesp.

Além disso, um acórdão já proibiu viagens da Buser em direção ao município de Ubatuba, no litoral paulista. Pedido semelhante, referente a viagens envolvendo a cidade de Caraguatatuba, já havia sido negado. Viagens com desembarque em Piracicaba, Americana e na capital do estado também já foram expressamente autorizadas pela corte.

O Rio de Janeiro é outro estado mais favorável à Buser. Em 2019, o TRF-2 negou a suspensão das atividades da plataforma. Em 2020, a 10ª Vara Federal do Rio de Janeiro obrigou a Buser a respeitar o circuito fechado, mas no ano seguinte o TRF-2 voltou a autorizar as viagens só de ida. Pelo menos mais uma decisão já liberou veículos apreendidos de parceira.

Pela Justiça estadual, três empresas parceiras já foram proibidas de operar pela Buser. No último ano, uma decisão de primeira instância negou a suspensão das operações da plataforma, o que mais tarde foi mantido pelo TJ-RJ. O MP estadual já se posicionou favoravelmente à Buser, baseado na livre iniciativa e livre concorrência.

Em Pernambuco, o Tribunal de Justiça já manteve decisão contrária à atuação de uma parceira, ainda pendente de análise pelo STJ. No entanto, a maioria das decisões da Justiça Federal do estado são favoráveis às parceiras da Buser — desde liminares até sentenças e acórdãos do TRF-5.

O sistema de fretamento colaborativo já foi questionado pela Abrati até mesmo no Supremo Tribunal Federal, em 2019, por meio de arguição de descumprimento de preceito fundamental. Após a própria Buser, a Associação Brasileira de Startups (ABStartups) e até a Advocacia-Geral da União defenderem o modelo de serviço, o ministro Luiz Edson Fachin, por questões processuais, negou seguimento à ação. Após este primeiro embate, a judicialização passou a ser mais regionalizada.

A atividade da plataforma também já foi autorizada pelo Tribunal de Contas da União (TCU). A corte havia suspendido em massa outorgas de funcionamento de serviços de transporte, o que afetava a Buser, mas em março do último ano a decisão foi derrubada.

Clique aqui para ler na íntegra a nota da Abrati
Clique aqui para ler na íntegra a nota da Buser
Clique aqui para ler na íntegra a nota da Abrafrec

 

Link: https://www.conjur.com.br/2022-fev-19/tribunais-divergem-autorizacao-funcionamento-buser

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