A cooperação técnica entre as instituições que tratam de acordos de leniência e de delação premiada ajudará a pacificar as sanções, evitando duplicidades em cobranças. No entanto, para especialistas, a medida deixa lacunas por não contar com a participação do Ministério Público Federal e não trazer detalhes sobre a supervisão que o Supremo Tribunal Federal fará.
O termo foi assinado na última sexta-feira (20/11) pela Polícia Federal, a Controladoria-Geral da União e a Advocacia-Geral da União. Nele, são definidos os ritos e os canais de comunicação institucional para troca de informações derivadas de acordos de delação firmados pela PF e acordos de leniência firmados pela CGU.
A expectativa com a criação do balcão único de leniência é acabar com os desacertos institucionais na negociação de acordos com empresas impedidas de fechar contrato com o setor público.
De acordo com o advogado Walfrido Warde, sócio fundador do Warde Advogados, a medida concretiza a promessa que os entes fizeram recentemente. O protocolo é fruto de um acordo de cooperação técnica, de agosto deste ano, que teve como signatários, além desses órgãos, o Ministério da Justiça e Segurança Pública e o TCU, sob a supervisão do Supremo Tribunal Federal.
“Nada mais salutar que os órgãos de combate à corrupção atuem de modo coordenado, em um contexto de acesso homogêneo às informações, para reforçar o fato de que o Estado é um só”, diz Warde.
Anos atrás, o advogado Igor Tamasauskas e sua equipe conseguiram costurar o acordo de leniência da agência publicidade MullenLowe Brasil, o primeiro a envolver o MPF e todas as agências do governo, além do TCU. Em entrevista à ConJur ele já havia defendido o envolvimento de todos os órgãos e instituições na mesma negociação. Especialista no tema, o advogado concorda com a ideia de fazer os órgãos “conversarem na mesma língua”.
Para Sebastião Tojal, sócio do Tojal Renault Advogados Associados, é louvável “a preocupação em buscar uma ação coordenada entre órgãos que, muito embora tenham atribuição distinta, possam no final convergir para o mesmo propósito do ressarcimento de dano ao ente da administração pública”.
Mas faltou o MP…
Mesmo os advogados que elogiam a iniciativa, no entanto, apontam que a ausência do Ministério Público Federal vai causar transtornos. A 5ª Câmara do MPF justificou a não adesão afirmando que o acordo limita inconstitucionalmente a atuação cível do órgão no enfrentamento da corrupção. Isso porque os termos propostos preveem a atuação do MPF reservada à investigação criminal de pessoas físicas, enquanto a legitimidade para a responsabilização de pessoas jurídicas envolvidas em corrupção, incluindo a negociação e celebração de acordos de leniência, caberia à AGU e à CGU.
Conforme explica Vera Chemim, no entanto, o Ministério Público deve participar junto da AGU na seara judicial no ajuizamento de ações e respectivas sanções, conforme prevê a Lei 7.347/1985. No caso da delação, ela lembra que na chamada Lei das Organizações Criminosas (12.850/2013) é determinado que a formalização da colaboração ocorra com a participação do delegado de polícia, o investigado e o seu defensor, com a manifestação do Ministério Público.
“Isso parece lógico, já que a investigação e os meios de prova são da competência daquele órgão, sem falar que o magistrado competente seria responsável pela sua futura homologação, o que garantiria a imparcialidade dessa fase pré-processual”, explica.
“Portanto, a competência para tal remete aos membros do Ministério Público (mais de um membro) e deve englobar as duas esferas de atuação (criminal e de improbidade administrativa), a despeito de tais negociações se realizarem com a participação de outros órgãos, como a CGU, AGU ou o TCU como se pretende viabilizar no presente protocolo, que estabelece uma comunicação visando controlar efetivamente tais institutos de colaboração.”
Igor Tamasauskas também apresentou ressalvas. Para ele, o protocolo recém-assinado, justamente por decorrer do acordo de cooperação técnica, gera ruídos e deveria ser revisitado neste ponto. “A partir do momento que se retira um órgão importante, como é o MPF, a chance é de não construir muito efeito. Houve um alijamento do órgão nas discussões e o protocolo quer liminar demais sua atuação”, explica.
Já Sebastião Tojal aponta que o alijamento do Ministério Público no processo de negociação dos acordos de leniência está se consolidando de uma maneira negativa para o interesse público.
Claudio Bidino, criminalista do Bidino & Tórtima Advogados, também lamenta a ausência do Ministério Público nas iniciativas. “Apenas compromete o aperfeiçoamento democrático do instituto da colaboração premiada no país.”
O advogado Guilherme Cremonesi, do escritório Finocchio & Ustra advogados, destaca a disputa pela definição de competências dos órgãos envolvidos. Para ele, a falta do MP demonstra não só a dificuldade de firmar diálogo com todos os atores envolvidos, como também a dificuldade de “colocar limites aos órgãos quanto à legitimidade de atuação de cada uma deles, de modo que causa insegurança jurídica e, consequentemente, dificulta e até inviabiliza a celebração dos acordos de leniência”.
O criminalista Luis Henrique Machado diz que o Ministério Público pode ser considerado a “principal instituição a entabular acordos de colaboração”. “Definitivamente, o protocolo sai perdendo.”
Uso de dados
Machado chama a atenção, ainda, para o fato de que não está claro como seria a supervisão do STF sobre a troca de dados entre as instituições. “Inquestionavelmente, o que mais leva preocupação, em que pese a seriedade dos órgãos em questão, é a possibilidade de vazamentos”, afirma.
O sigilo e tendência de fusão dos dados dos órgãos de persecução penal e de segurança também preocupam a advogada Estela Aranha, especialista em Direito Digital. “Historicamente essa fusão leva ao devassamento da privacidade atingindo o cerne das garantias penais: o processo equitativo, o estado de inocência, a garantia de não auto incriminação, a proteção dos não-suspeitos”, diz.
Para Paula Sion, do Cavalcanti, Sion e Salles advogados, o tema do compartilhamento de dados entre órgãos de investigação e demais órgãos da administração pública deve ser definido em lei e não em acordos travados entre os próprios órgãos públicos interessados nos dados.
“A competência para investigar, da Polícia Federal, por exemplo, não pode ser traduzida em autorização para transferência de dados à míngua de autorização legal.”
Link: https://www.conjur.com.br/2020-nov-23/cooperacao-entre-orgaos-acordo-leniencia-deixa-lacunas