Não faz o menor sentido alterar dispositivos, comprometendo sua sistematicidade, para tentar “pontuar” no Relatório do Banco Mundial
Ao ler o Capítulo III, artigo 5, da MP 1.040, de 29/03/2021, que propõe modificações na Lei das S.A. para proteger os acionistas minoritários e melhorar o ambiente de negócios, não pude deixar de lembrar uma frase de Millôr Fernandes: “A lei pode não resolver nada, mas dá cada ideia”.
Depois de negar-se a pandemia, a vacina, a necessidade de distanciamento social, o uso das máscaras, as orientações da Organização Mundial da Saúde (OMS) e dos cientistas, por que não se haveria de negar a invejável qualidade de nossa Lei das S.A. (Lei 6.404/76), com propostas de alterações absolutamente irrelevantes? O objetivo declarado da MP, em seu Capítulo III, é pífio: “melhorar o ambiente de negócios” para aumentar a nossa pontuação no “Doing Business” publicado pelo Banco Mundial. O meio utilizado é equivocado: uma Medida Provisória para alterar uma Lei Federal, sem qualquer necessidade de urgência.
Vejamos os dispositivos da MP para melhorar a proteção aos acionistas minoritários, muitos dos quais acarretarão efeitos contrários.
Em primeiro lugar, propõe-se alterar o artigo 122 da Lei das S.A. para conferir competência privativa à assembleia geral para: a) alienação ou contribuição para outra empresa de ativos, caso o valor da operação corresponder a mais de 50% do valor total dos ativos da companhia; e b) celebrar transações com partes relacionadas “que atendam aos critérios de relevância a serem definidos pela Comissão de Valores Mobiliários”. O que consta da alínea “a” constitui tipicamente ato de gestão da companhia, de competência de seus administradores, não da assembleia geral, pouco importando o valor dos ativos vendidos, mas sim o preço por eles obtido. Se os administradores venderem ativos por preço vil estarão descumprindo seus deveres fiduciários (de diligência, de lealdade e de agir no interesse da companhia), podendo ser responsabilizados por tais atos. Ora, com a mudança sugerida poderão simplesmente lavar as mãos, já que a responsabilidade pela decisão será dos acionistas. Na alínea “b” o absurdo é ainda maior; nega-se não só a realidade empresarial como alguns princípios fundamentais da lei societária. Grande parte das companhias abertas integram grupos de sociedades de fato, em que são comuns operações entre elas, muitas vezes necessárias e urgentes, como, por exemplo, os empréstimos para suprimento de caixa, ou atuação em conjunto para venda de produtos, compra de matéria- prima, etc. Esperar a aprovação da assembleia geral para realizar tais operações pode prejudicar o andamento normal dos negócios das companhias, lesando o interesse social, ou seja, de todos os seus acionistas, majoritários e minoritários. A Lei das S.A. já prevê adequada proteção nas operações de reestruturação societária entre partes relacionadas, em seu artigo 264. A CVM igualmente estabelece um tratamento especial a tais operações nos termos de seu Parecer de Orientação 35.
Operações entre partes relacionadas são legítimas desde que realizadas em condições comutativas, idênticas à praticadas no mercado, ou com pagamento compensatório adequado, prevendo a Lei a responsabilidade dos administradores e das sociedades controladoras quando favorecerem sociedade coligada, controladora ou controlada. Caso a assembleia aprove a operação, os administradores da companhia poderão igualmente invocar tal deliberação para isentar-se de responsabilidade, afinal a assembleia é o órgão soberano. Ademais, a norma é inócua: existindo acionista controlador, ele aprovará com seu voto a operação; não existindo, no caso do controle diluído, não haverá minoritários carentes de proteção.
Propõe-se alterar o artigo 124 para aumentar o prazo de convocação da assembleia geral de companhia aberta de quinze para trinta dias, sem qualquer necessidade, uma vez que, no caso de operações mais complexas a CVM pode aumentar para trinta dias o prazo em que os documentos relativos às matérias que serão discutidas sejam postos à disposição dos acionistas; pode ainda interromper por quinze dias o prazo para analisar as propostas que serão postas para deliberação dos acionistas.
Propõe-se, ainda, vedar na companhia aberta a acumulação do cargo de presidente do conselho de administração com o de diretor presidente ou principal executivo da companhia, ressalvando-se, porém, que a CVM poderá excepcionar tal vedação para companhias com menor faturamento. Também num aceno à melhor “governança” das companhias abertas propõe a MP que é obrigatória a presença de conselheiros independentes no conselho de administração, “nos termos e prazos definidos pela Comissão de Valores Mobiliários”. Ora, tais medidas podem ser tidas como recomendáveis, porém jamais devem ser obrigatórias, cabendo a cada companhia organizar sua gestão da melhor que melhor lhe aprouver.
Aliás, é interessante notar que, não sabendo como resolver as questões de operações entre partes relacionadas, vedação à acumulação de cargos e presença de conselheiros independentes no conselho de administração, os redatores da MP, simplesmente delegam à CVM tais tarefas, “empurrando o abacaxi” para o órgão regulador do mercado de capitais.
Há um enorme número de propostas de Emendas no Congresso, algumas delas interessantes, principalmente a que busca introduzir entre nós o instituto do voto plural, existente em muitos outros países, e que facilita a captação de recursos, principalmente em mercados mais desenvolvidos, ao permitir o exercício do poder de controle, por parte do empreendedor, com um menor percentual de ações. Trata-se de discussão relevante, mas que não cabe no âmbito da tramitação de uma Medida Provisória, demandando uma discussão mais aprofundada, com todos os agentes do mercado.
A Lei das S.A. é, reconhecidamente, um monumento legislativo, muito bem elaborada e que resolve, de maneira sistemática, os principais conflitos entre acionistas controladores e minoritários, complementada adequadamente pelas normas regulamentares e Pareceres de Orientação da CVM. Não faz o menor sentido alterar alguns de seus dispositivos, comprometendo sua sistematicidade, para tentar “pontuar” no Relatório do Banco Mundial.
É o caso de invocar o célebre ensinamento atribuído ao folclórico Neném Prancha, ao perceber a possibilidade de seu time ser goleado: “Se a derrota é inevitável, vamos recuar os halfes para evitar a catástrofe”. Retire-se todo o Capítulo III da MP 1.040 e evite-se um desnecessário dano à nossa excelente Lei das S.A.