Atualmente, pouco se vê a participação de grandes instituições financeiras nesse mercado
O financiamento do empresário em recuperação judicial no Brasil, imprescindível para a superação da crise econômico-financeira que poderia acometer sua atividade, raramente era realizado por instituições financeiras.
Alguns atribuem a ausência de financiamento pelas instituições financeiras diante das recomendações do Comitê de Basiléia para Supervisão Bancária e que foram internalizadas no Brasil. As regras de rating bancário disciplinadas pela Resolução CMN 2.682/99 e da Circular BC 3.648/2013 exigem o provisionamento de 100% do valor para o devedor classificado no nível H, o que será exigido, dentre outros parâmetros, se o devedor não satisfizer suas obrigações por mais de 180 dias (cf. art. 4º, inc. I, da Resolução CMN 2.682/99).
Em função desse entendimento, apesar de defendermos que não cabe o agravamento do rating durante o processo de recuperação judicial, até que o plano seja aprovado,[1] há aqueles que pensam diferente.
Para estes, o financiamento perde muito valor, porquanto, durante o período de suspensão para a negociação do plano de recuperação judicial, que pode ocorrer por 180 dias prorrogáveis por igual período, mas que na mediana dura 506[2] dias, o devedor não poderá satisfazer nenhuma das suas obrigações sujeitas ao plano de recuperação judicial, o pedido de recuperação judicial pelo devedor implica imediatamente a sua classificação para H.
Diante da grande onerosidade ou mesmo impossibilidade do mútuo por instituições financeiras, já que o montante emprestado deveria gerar provisionamento de 100%, os empresários em recuperação judicial no Brasil somente possuíam duas formas para fomentarem sua atividade.
A primeira forma, mais tradicional, promovia o financiamento da atividade do devedor às custas da dilação temporal e do desconto no pagamento dos credores. Esses se submetiam a um plano de recuperação judicial com previsão de pagamento dos credores quirografários, na mediana, em nove anos, com deságio de 59,3%[3].
Ainda que referido plano de recuperação judicial somente tivesse suas obrigações que se vencessem durante o período de dois anos de fiscalização efetivamente cumpridos apenas por 17,5% dos devedores, o plano de recuperação judicial era extensamente aprovado. A aprovação ocorria em 88,4% dos casos, para ser mais exato, conforme análise do NEPI, ainda que a condução da atividade pelo devedor fosse evidentemente inviável, diante da alternativa de decretação da falência.
Mesmo que drástica a solução por aprovar um plano de recuperação judicial inviável de um devedor sabidamente ineficiente, a falência era alternativa pior. A liquidação forçada falimentar provocaria um processo em que os credores receberiam apenas 5,8% do que lhes é devido, conforme a ordem de pagamento, e ao menos 15 anos após a decretação da falência[4].
A segunda forma consistia na alienação de estabelecimento empresarial ou bens de forma geral. De acordo com estudo da ABJ/NEPI-PUC, 35% dos planos de recuperação judicial previam, em 2018 e nas varas especializadas da capital de São Paulo, na mediana, a alienação de bens como forma de obtenção de recursos pela companhia[5].
Na prática, entretanto, ambas as formas de financiamento eram insuficientes. O devedor que previa a venda da UPI somente conseguia efetivamente realizá-la em 38,7% dos casos.
Por seu turno, o financiamento da atividade às custas dos próprios credores também era insuficiente pois não injetava novos recursos financeiros na recuperanda, além de afastar seus parceiros comerciais imprescindíveis às novas contratações para o desenvolvimento da atividade.
Como consequência, percentual diminuto das recuperandas, de 24,4%, conseguia demonstrar o cumprimento das obrigações previstas no plano e vencidas nos dois anos iniciais do período de fiscalização de modo a ter a recuperação judicial encerrada. Estudos demonstram que, diante dessa situação, ainda que se investigue apenas aqueles empresários que conseguiram continuar a desenvolver a atividade empresarial, essa foi reduzida em 25% do seu tamanho originário[6].
De forma a incentivar que agentes não financeiros possam financiar a atividade do empresário em recuperação judicial, a Lei 14.112/20 inseriu a Seção IV-A – Do Financiamento do Devedor e do Grupo Devedor durante a Recuperação Judicial. A nova disciplina do instituto nos arts. 69-A a 69-F é imediatamente aplicável, inclusive para os processos em curso, ressalvada a nova classificação dos créditos na falência.
Pela nova disciplina legal, o juiz poderá, depois de ouvir o Comitê de Credores, autorizar a celebração de contratos de financiamento garantidos por bens e direitos do ativo não circulante do devedor ou de terceiros. Em interpretação sistemática com o art. 66 da Lei 11.101/05, a cuja redação houve remissão expressa, os financiamentos poderão ser livremente contraídos pelo devedor. Apenas a outorga de garantia sobre bens componentes do ativo não circulante exige autorização judicial e desde que não tenha sido prevista no plano de recuperação judicial aprovado pelos credores.
Fora conferida a possibilidade de outorga de garantia subordinada ao financiador. Nos termos do art. 69-C, podem ser conferidas ao financiador garantias reais sobre garantias pré-existentes, excetuadas as garantias fiduciárias previamente outorgadas. Não houve a possibilidade de outorga de garantias prioritárias sobre bens anteriormente garantidos ou a possibilidade de compartilhamento de garantias.
Todas essas alterações, nesses termos, apenas consagram interpretações doutrinárias e jurisprudenciais anteriores. Afinal, a oneração de bens do ativo não circulante já era permitida anteriormente, desde que prevista no plano de recuperação judicial ou autorizada judicialmente.
Verdadeira inovação, o financiamento poderá ser concedido por qualquer pessoa, inclusive pelos sócios do devedor ou por partes relacionadas. Independentemente de quem foi o financiador, na hipótese de convolação da recuperação judicial em falência, o crédito decorrente do financiamento será considerado como extraconcursal e prioritário em relação aos demais créditos. Referidos créditos decorrentes do financiamento efetivamente desembolsado somente não terão prioridade, na falência, sobre os créditos das despesas indispensáveis à administração da falência e sobre os créditos trabalhistas de natureza salarial vencidos nos três meses que antecederem a quebra, limitados a cinco salários mínimos.
A reforma, porém, foi tímida. Os incentivos legais passam pelo desenvolvimento de uma indústria financeira, com múltiplos agentes competindo entre si para fomentar a atividade empresarial. Nesses termos, como forma de estimular as instituições financeiras a participarem desse mercado, o período de suspensão das obrigações para negociação do plano de recuperação judicial não deveria mesmo ser considerado como inadimplemento a ponto de obrigar, somente por tal premissa, a deterioração do rating e a majoração do provisionamento bancário. Afinal, como se denota do § 3º do art. 8º da Resolução nº 2.682 do BC, “renegociação” significa “a composição de dívida, a prorrogação, a novação, a concessão de nova operação para liquidação parcial ou integral de operação anterior ou qualquer outro tipo de acordo que implique na alteração nos prazos de vencimento ou nas condições de pagamento originalmente pactuadas”.
Em outras palavras, praticamente qualquer tipo de modificação das obrigações inicialmente avençadas entre credor (instituição bancária) e devedor (tomador de crédito) será considerada um ato de “renegociação” que exime a instituição financeira de agravar o rating de risco. Trazendo essa disciplina para os processos de recuperação judicial, é mesmo provável que grande parte dos casos concretos acabem sendo enquadrados na hipótese do art. 8º da Resolução nº 2.682. A suspensão das obrigações durante o processo de recuperação judicial, ao menos até a novação representada no Plano de Recuperação Judicial, tem por finalidade viabilizar a negociação de novas bases que serão refletidas em eventual aditamento ao plano de soerguimento do devedor.
Atualmente, pouco se vê a participação de grandes instituições financeiras nesse mercado de financiamento do devedor em recuperação judicial. Trata-se de um mercado ainda visto como de alto risco, estimulado mais pela perspectiva de maior rentabilidade. Com efeito, o dinheiro novo continua a ser muito caro para as empresas em recuperação judicial, embora já se observe um maior crescimento do mercado por conta das alterações promovidas pela Lei 14.112/20. Talvez por conta de uma preferência maior, embora tímida, no cenário de falência (antes em último na ordem de preferência dos credores extraconcursais, agora em segundo lugar – art. 84, I-B, da Lei 11.101/05), e de uma maior mitigação do risco do financiador pela pendência de recursos interpostos da decisão que autoriza a oneração de bens do ativo não circulante (art. 69-B). O caso Samarco, aliás, é um exemplo que se observa com proposta recente de financiamento já a par da alteração legislativa.
Portanto, de forma a permitir maior ingresso das instituições financeiras nesse mercado, cabe ao BC aplicar a melhor interpretação da norma e assegurar um ambiente mais salutar para investimentos nas empresas que passam por essa difícil fase de soerguimento financeiro. Até porque, para além da reforma legislativa, a oferta de crédito é dependente de cenário econômico favorável[7].
Ambiente econômico estável, com múltiplos agentes e juros baixos exigem que os investidores busquem fontes alternativas e mais rentáveis de investimento, o que assegurará o financiamento imprescindível para que o empresário em recuperação judicial consiga superar a crise econômico-financeira que acomete a sua atividade.
[1] O art. 8º da Resolução nº 2.682 do BC declara que “a operação objeto de renegociação deve ser mantida, no mínimo, no mesmo nível de risco em que estiver classificada (…)”, de modo que, se houver elementos no caso concreto que induzam ao entendimento de que a suspensão do cumprimento do plano de recuperação judicial ou a prorrogação dos prazos de pagamento configurem a renegociação das dívidas sujeitas à recuperação judicial, então não haverá, também por isso, obrigação de agravar o rating de risco.
[2]WAISBERG, Ivo, TRECENTI, Julio e SACRAMONE, Marcelo. Atualização da 2ª fase do observatório da insolvência, ABJ/NEPI-PUCSP, São Paulo, 2021, p. 29.
[3] Idem.
[4] WAISBERG, Ivo, TRECENTI, Julio e SACRAMONE, Marcelo. 3ª Fase do observatório de insolvência ABJ/NEPI-PUCSP, São Paulo, 2021, no prelo.
[5] Atualização da 2ª fase do observatório da insolvência, ABJ/NEPI-PUCSP, São Paulo, 2021.
[6] TRECENTI, Julio, NUNES, Marcelo e SACRAMONE, Marcelo. Recuperação judicial e preservação da empresa. Evidências empíricas sobre a efetividade da recuperação judicial na manutenção da atividade econômica das empresas, no prelo.
[7] SARAGIOTTO, Luiz Fabiano. “DIP Financing – Um olhar Alternativo – entendendo a evolução deste Instrumento no Mercado Americano e as Perspectivas para seu Desenvolvimento no Mercado Brasileiro”. In MARTINS, André Chateaubriand; YAGUI, Márcia (coord.). Recuperação Judicial: Análise comparada Brasil – Estados Unidos. São Paulo: Almedina, 2020, p. 119.
Link: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/financiamento-empresa-recuperacao-judicial-04112021