Inadmissibilidade da fraude contra credores para desconsideração da PJ

Um pouco de história

A introdução do instituto da desconsideração da personalidade jurídica no Direito brasileiro é recente, tendo por marco palestra de Rubens Requião na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná, publicada pela Revista dos Tribunais em 1969 [1]. A mesma universidade, aliás, abrigava Lamartine Corrêa de Oliveira, autor do livro que é referência para qualquer estudioso do tema: “A dupla crise da pessoa jurídica” [2].

Lamartine Corrêa [3] chama a teoria proposta por Rubens Requião de subjetiva, por sua origem sobretudo da experiência jurisprudencial norte-americana [4], que é o berço do instituto [5].

Conforme Requião, a autonomia patrimonial é consequência da concessão de personalidade jurídica e permite que a responsabilidade dos sócios seja estranha à responsabilidade social. Com isso, ainda que haja responsabilidade ilimitada e solidária, ela será sempre subsidiária [6]. Porém, diferentemente da narrativa à época axiomática da separação patrimonial, Rubens Requião propõe uma relativização do direito da personalização jurídica, sobretudo por meio dos conceitos de abuso de direito e de fraude.

Para o autor, o direito foi criado em atenção ao indivíduo tendo por objetivo ordenar sua convivência com os demais, de modo que, embora privados, o exercício de seus direitos deve atender a uma finalidade social. Assim, quando o titular de um direito escolhe o meio mais danoso a outrem para exercê-lo, está cometendo abuso de direito. O instituto se difere da fraude, que é definível como “o negócio jurídico tramado para prejudicar credores, em benefício do declarante ou de terceiro” [7]. Com efeito, para Requião seria fundamento para a desconsideração da personalidade jurídica a atuação fraudulenta ou em abuso de direito do sócio [8].

A teoria proposta por Rubens Requião foi desafiada pela teoria objetiva de Fábio Konder Comparato. Conforme o emérito professor da USP, a fundamentação da desconsideração da personalidade jurídica no abuso de direito e na fraude à lei é inaceitável, porque os institutos não delimitam com precisão a especificidade da desconsideração, que é a superação da autonomia patrimonial em face de sua violação pelo controlador, permitindo casuísmos que não são sustentáveis no sistema romano-germânico [9]. Partindo desse subjetivismo, qualquer ato legítimo que possa ser interpretado como fraudatório ou abusivo, embora não viole objetivamente a autonomia patrimonial e não gere benefício ao controlador, poderia ser utilizado como mote para a desconsideração. Considerando que a pessoa jurídica é “uma técnica da separação patrimonial”, “a confusão patrimonial entre controlador e sociedade controlada” é, para Fábio Konder Comparato, “o critério fundamental para a desconsideração da personalidade jurídica externa corporis” [10].

Há confusão patrimonial quando o controlador “confunde o seu patrimônio pessoal com o da sociedade, degradando-a, assim, à condição de simples instrumento de sua atividade individual” [11]. Seria confusão patrimonial o pagamento de dívidas do sócio pela empresa, a realização de empréstimos ao controlador que nunca são cobrados, o cumprimento pela empresa de obrigações do sócio ou vice-versa. Desse modo, se o controlador descumpre a separação patrimonial na prática, não há razão por que os juízes a respeitem, já que isso tornaria a regra da autonomia patrimonial puramente unilateral [12].

Opção do Código Civil: fraude contra credores não enseja a desconsideração da personalidade jurídica
O projeto de Código Civil, muito bem alimentado por um debate profícuo de teorias para a desconsideração, adotou a teoria objetiva de Fábio Konder Comparato, insculpindo no artigo 50 do Código Civil a confusão patrimonial como fundamento para a desconsideração da personalidade jurídica. Porém, juntamente com a confusão patrimonial veio a hipótese do desvio de finalidade, que já tinha sido criticada pelo comercialista.

Para Fábio Konder, a noção de desvio de finalidade não serviria à desconsideração, já que “não se trata da proibição da prática de atos ultra vires, não previstos no objeto social, pois os patrimônios da sociedade e do sócio podem confundir-se, praticamente, no estrito desempenho da atividade empresarial, prevista nos estatutos ou atos constitutivos” [13].

Para afastar o risco desconsideração indiscriminada por atos ultra vires, a Lei da Liberdade Econômica (Lei nº 13.874, de 20 de Setembro de 2019) especificou que “não constitui desvio de finalidade a mera expansão ou alteração da finalidade original da atividade econômica específica da pessoa jurídica” (artigo 50, §5º, CC), definindo desvio de finalidade como “utilização da pessoa jurídica com o propósito de lesar credores e para a prática de atos ilícitos de qualquer natureza” (artigo 50, §1º, CC) [14].

Desse modo, por opção do legislador, o Código Civil não adotou a fraude ou o abuso de direito como fundamentos para a desconsideração. Essa é razão mais do que suficiente para que os institutos não sejam utilizados como critérios para a desconsideração da personalidade jurídica.

Há, ainda, razões mais contundentes para o não uso da fraude contra credores como fundamento para a desconsideração da personalidade jurídica. Diferentemente da fraude, que é conceito genérico e polissêmico [15], a fraude contra credores é um instituto já consolidado na literatura jurídica e tem, desde o Direito Romano, uma sanção jurídica específica: a invalidade. Conforme se nota nas Institutas de Justiniano, “aquele que manumite em fraude a credores pratica um ato inválido” [16]. Também nas institutas encontra-se, como requisitos para a fraude contra credores, o eventus damni e consilium fraudis [17].

No Código Civil de 1916 a fraude contra credores era prevista como hipótese específica de anulação do ato jurídico, conforme previsão dos artigos 106 e seguintes. Assim, no regime do Código Beviláqua, “o ato fraudulento é suscetível de revogação pela ação pauliana” [18]. Tratamento semelhante foi dado pelo Código Civil de 2002 nos artigos 158 e seguintes. A fraude contra credores é instituto voltado à anulação de negócio praticado por devedor já insolvente — ou por eles reduzido à insolvência — com prejuízo aos direitos creditórios de terceiros (eventus damni), quando o negócio foi realizado com intuito de lesar os credores (consilium fraudis). O meio legal para a anulação é, ainda, a ação pauliana, regida pelo procedimento comum do Código de Processo Civil.

Assim, é incabível do ponto de vista técnico o recurso ao instituto da fraude contra credores para fundamentar a desconsideração da personalidade jurídica, já que a previsão de duas sanções jurídicas distintas para o mesmo problema viola o primado da coerência do ordenamento jurídico.

Por fim, por sua própria natureza, a fraude contra credores é incompatível com a desconsideração da personalidade jurídica, sob pena de desvirtuamento dos institutos. Conforme define o artigo 50 do Código Civil, a existência de confusão patrimonial ou desvio de finalidade tem por sanção a ineficácia da autonomia patrimonial para a responsabilização dos sócios — ou administradores — por obrigações específicas da pessoa jurídica ou, inversamente, a responsabilização da pessoa jurídica por dívida do sócio ou administrador. Desse modo, é pressuposto específico para a desconsideração a existência de relação societária entre as partes, seja formal ou de fato (caso do sócio oculto).

A fraude contra credores, por sua vez, ocorre quando o alienante arruína seu patrimônio para prejudicar credores por meio de atos gratuitos ou onerosos. No caso, não se exige que o alienante tenha qualquer vínculo societário com aquele que recebe os bens. Desse modo, a aplicação da fraude contra credores como fundamento para a desconsideração pode desvirtuar a especificidade de seu objeto, permitindo a responsabilização de terceiros quando nem mesmo relação societária ou acionária existe. Sem contar que permitiria distorções como a responsabilização de terceiro que recebeu um simples veículo em doação por dívida milionária que não contraiu.

O Direito Civil brasileiro refinou a desconsideração da personalidade jurídica com base em discussões de comercialistas de peso, superando a teoria subjetiva proposta na década de 1970 com uma clara adoção da teoria objetiva. Desse modo, seja pelo respeito à opção do legislador, seja por incompatibilidade técnica e incoerência, seria desprezar riquíssimos ganhos doutrinários e legislativos permitir a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica com base no instituto da fraude contra credores.

*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II—Tor Vergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e UFAM).

[1] REQUIÃO, Rubens. Abuso de direito e fraude através da personalidade jurídica. Revista dos Tribunais. nº 58, v. 803, p. 12-24, São Paulo.

[2] OLIVEIRA, José Lamartine Correia de. A dupla crise da pessoa jurídica. São Paulo: Saraiva, 1979.

[3] Ibid.p. 555

[4] REQUIÃO, Rubens. Abuso de direito e fraude através da personalidade jurídica. Revista dos Tribunais. nº 58, v. 803, p. 12-24, São Paulo. p. 13-14.

[5] “It is fair to consider the United States as the origin of the doctrine of corporate veil piercing. In this country, piercing the veil takes many different forms and the approach followed is often difficult to compare with that adopted in the European legal systems. Therefore, it was considered appropriate to give some more background to this legal system as well”. (VANDEKERCKHOVE, Karen. Piercing the Corporate Veil. Netherlands: Kluwer Law International, 2007. p. 28)

[6] REQUIÃO, Rubens. Abuso de direito e fraude através da personalidade jurídica. Revista dos Tribunais. nº 58, v. 803, p. 12-24, São Paulo. p. 15.

[7] Ibid. p. 16.

[8] “Quando propugnamos pela divulgação da doutrina da desconsideração da pessoa jurídica em nosso direito, o fazemos invocando aquelas mesmas cautelas e zelos de que a revestem os juízes norte-americanos, pois sua aplicação há de ser feita com extremos cuidados, e apenas em casos excepcionais, que visem a impedir a fraude ou o abuso de direito em vias de consumação” (REQUIÃO, Rubens. Abuso de direito e fraude através da personalidade jurídica. Revista dos Tribunais. nº 58, v. 803, p. 12-24, São Paulo. p. 23).

[9] “Repetindo a crítica de Serick e outros autores ao ‘casuísmo, verdadeiramente insatisfatório para um sistema jurídico do tipo romano-germânico’ imputável à origem jurisprudencial do disregard, e à imprestabilidade das metáforas como formas de fundamentação e delimitação dessa ‘suspensão de efeitos’ da separação patrimonial, busca Konder Comparato definir-se, quanto à opção teórica, em matéria de desconsideração. Sua opção é nitidamente objetivista. As explicações com base nas noções de abuso de direito e fraude à lei parecem-lhe insatisfatórias. Principalmente, porque não explicariam os casos de desconsideração a favor do sócio-controlador” (OLIVEIRA, José Lamartine Correia de. A dupla crise da pessoa jurídica. São Paulo: Saraiva, 1979. p. 552)

[10] COMPARATO, Fábio Konder. O poder de controle na sociedade anônima. 2.ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1977. p. 333.

[11] Ibid. p. 331.

[12] Ibid. p. 333.

[13] Ibid. p. 339.

[14] Previu, também, a desconsideração inversa (artigo 50, §3º), definiu o que é confusão patrimonial (artigo 50, §2, CC) e que a mera existência de grupo econômico não implica a desconsideração da personalidade jurídica (artigo 50, §1º, CC)

[15] “‘Fraus’ é um termo polissêmico nas fontes jurídicas, podendo indicar, genericamente, um prejuízo qualquer (daí se falar em fraude ou prejuízo a credores, em um sentido mais objetivo). ‘Em geral, quando se discute acerca do prejuízo <causado a outrem (fraus)>, deve ser levado em conta não aquilo que não obteve o autor, mas <sim> aquilo que não tiver podido obter em função de seu adversário’ (D. 50, 17, 78). ‘No ius civile, a oferição do prejuízo <(fraus)> deve ser sempre feita não somente tendo em vista o resultado, mas também a intenção <de quem cometeu o dano>’ (D. 50, 17, 79). ‘Uma das coisas é a fraude, outra <é> a pena. De fato, fraude pode haver sem pena; pena sem fraude não pode haver. Pena é a punição pelo dano; fraude tanto se chama o próprio ilícito, quanto <é tida> como que certa preparação para a pena’ (D. 50, 16, 131 pr)” (JUSTINIANO. Institutas de Justiniano: primeiros fundamentos de direito romano Justinianeu. Tradução de Bernardo Bissoto Queiroz de Moraes. 2.ed. São Paulo: YK Editora, 2021. p. 73, nota 123).

[16] Ibid. p. 73. Inst. 1,6.

[17] “De outro lado, parece manumitir em fraude a credores aquele que já era insolvente no momento em que manumitiu ou aquele que deixará de ser solvente por ter dado a liberdade. Parece, contudo, ter prevalecido que, a não ser que o manumissor tivesse também a intenção de fraudar, não se impedia a liberdade, embora o patrimônio dele não bastasse para os credores. De fato, os homens frequentemente esperam mais de seus recursos do que <de fato> há em seu <patrimônio>. Sendo assim, entendemos que é impedida a liberdade <somente> quando os credores são fraudados de ambos os modos, isto é: tanto em razão da intenção <(fraudatória)> daquele que manumite quanto da própria circunstância <(objetiva)> de o patrimônio não ser suficiente para os credores” (Ibid. p. 74. Inst. 1,6,3).

[18] GOMES, Orlando. Introdução ao Direito Civil. 11.ed. Atualização e notas de Humberto Theodoro Júnior. Rio de Janeiro: Forense, 1995. p. 431. Deve-se destacar, porém, que há nota de Humberto Teodoro Júnior indicando equivocado o arrolamento da fraude contra credores entre as hipóteses de anulação, já que seu efeito deveria ser a ineficácia, que é a solução adotada pelo Código de Processo Civil no caso fraude à execução (p. 431).

 

Link: https://www.conjur.com.br/2022-ago-08/direito-civil-atual-inadmissibilidade-fraude-credores-desconsideracao-pj

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