Intervenção do Ministério Público na falência e na recuperação de empresas

 

Além de sua atribuição para investigar e processar (CF, artigo 129, I) os crimes falimentares previstos nos artigos 168 a 178, da Lei nº 11.101/2005, e outros delitos conexos, o Ministério Público, em vários momentos do processo de falência e de recuperação da empresa, é chamado a intervir, na condição de fiscal da lei.

Vejamos algumas das hipóteses de intervenção expressamente previstas na Lei de Falências e Recuperação de Empresas (Lei nº 11.101/2005):

1ª) O artigo 8º prevê que, além do devedor, seus sócios e qualquer credor, o Ministério Público também poderá apresentar ao juiz impugnação contra a relação de credores, apontando a ausência de qualquer crédito ou manifestando-se contra a legitimidade, importância ou classificação do crédito relacionado.

Em complementação, o artigo 19, da mesma lei, prevê que o administrador judicial, qualquer credor ou o Ministério Público poderá, até o encerramento da falência ou da recuperação judicial, pedir a exclusão, outra classificação ou a retificação de qualquer crédito, nos casos de descoberta de falsidade, dolo, simulação, fraude, erro essencial ou, ainda, documentos ignorados na época do julgamento do crédito ou da inclusão no quadro geral de credores.

2ª) O artigo 22, § 4º, dispõe que, se o relatório do administrador judicial apontar responsabilidade penal, o Ministério Público deverá ser intimado para tomar conhecimento de seu teor.

3ª) Nos termos do artigo 30, § 2º, como qualquer credor e o devedor, o Ministério Público poderá requerer ao juiz a substituição do administrador judicial ou dos membros do Comitê nomeados em desobediência aos preceitos da LFRJ.

4ª) Nos termos do artigo 52, V, o juiz, ao deferir o processamento da recuperação judicial, ordenará a intimação do Ministério Público, além das Fazendas Públicas federal, estadual, do Distrito Federal e municípios em que o devedor tiver estabelecimento.

5ª) Da decisão que conceder a recuperação judicial, caberá recurso de agravo que poderá ser interposto por qualquer credor e pelo Ministério Público (artigo 59, § 2º).

6ª) A Lei nº 11.101/2005, prevê ainda que, na sentença em que decretar a falência, o juiz determinará a intimação do Ministério Público e das Fazendas Públicas (artigo 99, XIII).

7ª) Nos termos do artigo 104, VI, da LFRJ, o Ministério Público, assim como o juiz, administrador judicial ou credor poderá reclamar dos representantes legais do falido informações sobre circunstâncias e fatos que interessem à falência.

8ª) O Ministério Público também deverá ser intimado de qualquer ato de alienação de ativos da Massa Falida, sob pena de nulidade, conforme previsto no artigo 142, § 7º, da LFRJ.

9ª) O artigo 143, em complementação, prevê que, em qualquer das modalidades de alienação de ativos referidas no artigo 142, o Ministério Público, assim como o devedor e qualquer credor, poderá oferecer impugnação ao juiz, no prazo de 48 horas da arrematação.

10ª) Finalmente, voltando ao início deste texto, em complementação às disposições criminais, o artigo 187, da LFRJ, dispõe que, intimado da sentença que decreta a falência ou concede a recuperação judicial, o Ministério Público, ao verificar a ocorrência de crime previsto na LFRJ, promoverá imediatamente a ação penal, ou, se entender necessário, requisitará a abertura de inquérito policial.

Além das hipóteses acima mencionadas, o juiz, se na falência ou na recuperação judicial e em qualquer incidente correlato, constatar a necessidade de ouvir o Ministério Público, poderá intimá-lo para que se manifeste nos autos.

Assim, apesar do veto presidencial ao artigo 4º, da Lei n. 11.101/2005, a intervenção do Ministério Público é indispensável, sob pena de nulidade.

Previa o texto vetado:

“O representante do Ministério Público intervirá nos processos de recuperação judicial e de falência.

Parágrafo único: além das disposições previstas nesta Lei, o representante do Ministério Público intervirá em toda ação proposta pela massa falida ou contra esta.”

Temos, enfim, várias disposições previstas na LFRJ, que mandam cientificar, intimar o Ministério Público e lhe asseguram legitimidade concorrente para recursos e impugnações. Além disso, aplicam-se de forma subsidiária aos processos e incidentes relativos à LFRJ as normas gerais do CPC, que preveem a intervenção do MP como fiscal da lei (artigos 176 a 181).

E no que diz respeito ao parágrafo único do artigo 4º, também vetado, apesar do veto, o Poder Judiciário normalmente intima o Ministério Público a se manifestar nas ações em que a massa falida figure como parte ou interessada.

É fato que o veto trouxe maior discricionariedade ao magistrado para a remessa dos autos ao MP. Mas não alijou o MP de sua atuação nos processos de falência e recuperação judicial, nos quais o interesse público se faz presente por força do concurso universal de credores, da necessidade de se conferir efetividade ao princípio da preservação da empresa e ao princípio do tratamento paritário entre os credores e aos demais princípios previstos no CPC, considerando ainda as finalidades do processo de falência, previstas na LFRJ, em seu artigo 75[1].

O legislador em nenhum momento pretendeu afastar o Ministério Público das causas que envolvam falências e recuperações judiciais, por suas repercussões civis, criminais, sociais, econômicas e tributárias, que fazem com que o interesse público e o interesse social relevante estejam presentes.

O veto havido, na realidade, em lugar de afastar o MP desses processos, chamou a atenção para a efetiva necessidade de sua intervenção.

Nesse sentido, a doutrina de Maria Rita Rebello Pinho e Fernando Antonio Maia da Cunha afirma que, mesmo em situações não expressamente previstas na lei, nada impede que o juiz, se julgar necessária a intervenção do MP, o intime a se manifestar: “Isso porque a função do Ministério Público tem previsão constitucional e é inderrogável por lei. Dispõe o artigo 127 da Constituição Federal, reproduzido no artigo 176 do Código de Processo Civil, que o Ministério Público é instituição permanente, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis” (Comentários à Lei de Recuperação de Empresas e Falências. São Paulo: Contracorrente, 2022, p. 95) (destacamos).

Na mesma direção, o pensamento de Manoel Justino Bezerra Filho, que observa:

“Enfim, o melhor entendimento, que trará maiores garantias à sociedade é no sentido de que os três procedimentos previstos nesta Lei (recuperação extrajudicial com pedido de homologação judicial, recuperação judicial e falência, envolvem sempre o interesse público e, por isso, até por se tratar de situação de crise da empresa, poderá haver ameaça de lesão a esse interesse. Em consequência, sempre que necessário, o Ministério Público deve ser ouvido, zelando o juiz do processo para que os autos lhe sejam remetidos quando a situação, a critério judicial, assim recomendar (Lei de Falências e Recuperação de Empresas Comentada artigo por artigo, 15ª ed. São Paulo: RT, 2021, p. 91) (destacamos).

Nesse mesmo sentido, o C. Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do REsp 1.884.860/RJ, julgado em 20 de outubro de 2020, relatora a ministra Nancy Andrighi, observou que a despeito do veto ao artigo 4º, da LFRJ, não foi reduzida a importância do papel da atuação do MP na tramitação das ações que versem falências e recuperações judiciais [2].

Na mesma direção, o E. Tribunal de Justiça de São Paulo tem entendido indispensável a intervenção do Ministério Público em ações que digam respeito à falência [3] e à recuperação judicial [4], sob pena de nulidade.

No dia 3 de julho de 2023, o Plenário do CNMP, Conselho Nacional do Ministério Público, aprovou, por unanimidade, proposta de recomendação que dispõe sobre o aprimoramento da atuação do Ministério Público nas causas relacionadas à recuperação judicial e falência de empresas, nos termos da Lei nº 11.101/2005.

De acordo com o texto aprovado, a recomendação tem por objetivo “orientar e aperfeiçoar a atuação do Ministério Público no emprego da Lei de Recuperação Judicial e Falências de empresas e em situações correlatas e assemelhadas, visando salvaguardar o interesse público que decorre da necessidade de aplicar eficazmente as ferramentas legais do sistema de insolvência, a fim de evitar ou reduzir e minimizar os prejuízos sociais que dela possam advir”.

A atuação do MP, segundo o CNMP, terá por parâmetros: a) o equilíbrio entre as noções de encerramento de atividades econômicas viáveis e a manutenção artificial do funcionamento de empresas inviáveis; b) o risco da perda dos potenciais empregos, tributos e riquezas, que impedem a produção de benefícios econômicos e sociais e que atua em prejuízo do interesse da sociedade e do adequado funcionamento da economia; c) a defesa dos direitos sociais decorrentes de eventuais prejuízos ameaçados ou causados pela insolvência empresarial.

Cada unidade do MP, segundo o CNMP, adaptará e aprimorará sua disciplina normativa e de natureza administrativa, para garantir estrutura adequada e especializada, visando atender aos objetivos da recomendação [5].

Enfim, a realidade forense tem demonstrado que a intervenção do Ministério Público, nas causas que envolvam falência ou recuperação judicial, é imprescindível, sob pena de nulidade do processo, não pelo aspecto puramente formal, mas pelo prejuízo ao interesse público e ao interesse de relevância social ou econômica, pelos quais o MP deve zelar e intervir.

Nos termos da Resolução do MP-SP n– 1.167/19 (PGJ-CGMP) [6], a intervenção deverá ocorrer no bojo de ação individual em que houver relevante repercussão social ou econômica, como se dá nos casos que envolvam relação de consumo ou pessoas vulneráveis.

Quando a discussão envolver direitos puramente patrimoniais, disponíveis, não será obrigatória a intervenção do MP e a ausência de intervenção, em caso concreto no qual não haja relevante repercussão na ordem social ou econômica, não acarretará nulidade [7].

 

[1] Art. 75. A falência, ao promover o afastamento do devedor de suas atividades, visa a: (Redação dada pela Lei nº 14.112, de 2020) (Vigência)

I – preservar e a otimizar a utilização produtiva dos bens, dos ativos e dos recursos produtivos, inclusive os intangíveis, da empresa; (Incluído pela Lei nº 14.112, de 2020) (Vigência)

II – permitir a liquidação célere das empresas inviáveis, com vistas à realocação eficiente de recursos na economia; e (Incluído pela Lei nº 14.112, de 2020) (Vigência)

III – fomentar o empreendedorismo, inclusive por meio da viabilização do retorno célere do empreendedor falido à atividade econômica. (Incluído pela Lei nº 14.112, de 2020) (Vigência)

[2] RECURSO ESPECIAL. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. NEGATIVA E PRESTAÇÃO JURISDICIONAL. INOCORRÊNCIA. ADMINISTRADOR. HONORÁRIOS. FIXAÇÃO EM PATAMAR DE 5% SOBRE OS CRÉDITOS CONCURSAIS. IRRESIGNAÇÃO MANIFESTADA PELO MINISTÉRIO PÚBLICO. LEGITIMIDADE RECURSAL CONFIGURADA. 1. Ação ajuizada em 23/4/2018. Recurso especial interposto em 14/6/2019. Autos conclusos à Relatora em 25/8/2020. 2. O propósito recursal é definir (i) se houve negativa de prestação jurisdicional e (ii) se o Ministério Público é parte legítima para recorrer da decisão declaratória do pedido de processamento da recuperação judicial, fixa os honorários do administrador judicial no patamar máximo. 3. O acórdão recorrido adotou fundamentação suficiente à solução da controvérsia, não se vislumbrando, nele, qualquer dos vícios elencados no art. 1.022 do CPC/15. 4. O texto normativo que resultou na atual Lei de Falência e Recuperação de Empresas saiu do Congresso Nacional com uma roupagem que exigia do Ministério Público atuação em todas as fases dos processos de recuperação judicial e de falência. Essas amplas e genéricas hipóteses de intervenção originalmente previstas foram restringidas pela Presidência da República, mas nem por isso reduziu-se a importância do papel da instituição na tramitação dessas ações, haja vista ter-se franqueado ao MP a possibilidade de “requerer o que entender de direito”. 5. A interpretação conjunta da regra do art. 52, V, da LFRE – que determina a intimação do Ministério Público acerca da decisão que defere o processamento da recuperação judicial – e daquela constante no art. 179, II, do CPC/15 – que autoriza, expressamente, a interposição de recurso pelo órgão ministerial quando a este incumbir intervir como fiscal da ordem jurídica – evidencia a legitimidade recursal do Parquet na hipótese concreta.6. Ademais, verifica-se estar plenamente justificada a interposição do recurso pelo MP como decorrência de sua atuação como fiscal da ordem jurídica, pois é seu papel institucional zelar, em nome do interesse público (função social da empresa), para que não sejam constituídos créditos capazes de inviabilizar a consecução do plano de soerguimento. RECURSO ESPECIAL NÃO PROVIDO, SEM MAJORAÇÃO DE HONORÁRIOS (negrito não constante do original).

[3] APELAÇÃO CÍVEL – FRANQUIA – Ação de resolução contratual por força maior (Covid-19) – Sentença que julgou extinta a ação sem resolução do mérito, tendo em vista a existência de cláusula compromissória para resolução de controvérsias provenientes do contrato de franquia por meio de arbitragem, na forma do artigo 485, inciso VII do Código de Processo Civil – Insurgência do autor pessoa física – Falência da autora pessoa jurídica decretada antes da sentença recorrida – Necessidade de inclusão da massa falida no processo, com a intimação do Administrador Judicial e a intervenção do Ministério Público – Incidência dos artigos 22, inciso III, alínea c, 76, parágrafo único da Lei 11.101/2005 e artigos 75, inciso V e 178, inciso I do Código de Processo Civil – Decretação de nulidade da sentença, bem como dos atos processuais realizados após a data do decreto de quebra da empresa, devendo os atos serem refeitos com a intimação do Administrador Judicial e a intervenção do Ministério Público – Sentença anulada – Recurso prejudicado (TJSP; Apelação Cível 1082831-84.2020.8.26.0100; Relator (a): Jane Franco Martins; Órgão Julgador: 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro Central Cível – 2ª VARA EMPRESARIAL E CONFLITOS DE ARBITRAGEM; Data do Julgamento: 14/06/2023; Data de Registro: 15/06/2023);

[4] EMBARGOS À EXECUÇÃO. NULIDADE. OCORRÊNCIA. AUSÊNCIA DE INTERVENÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO. Corré “Carmen Steffens” que se declarou em “recuperação judicial” desde o seu ingresso nos autos. Feito que tramitou sem que o membro do “Parquet” fosse intimado para intervir no processo. Regra dos artigos 178 e 179, do Código de Processo Civil, não observada. Processo nulo. Inteligência do artigo 279, do Diploma Processual Civil. Sentença anulada, com determinação. Análise da apelação prejudicada.
(TJSP; Apelação Cível 1012789-13.2020.8.26.0196; Relator (a): JAIRO BRAZIL; Órgão Julgador: 15ª Câmara de Direito Privado; Foro de Franca – 2ª Vara Cível; Data do Julgamento: 25/05/2022; Data de Registro: 25/05/2022).

[5] Informações disponíveis em: https://www.cnmp.mp.br/portal/todas-as-noticias/16614-aprovada-proposta-de-recomendacao-que-visa-ao-aprimoramento-do-mp-nas-causas-de-recuperacao-judicial-e-falencia-de-empresas – acesso em 18 de julho de 2023.

[6] Nesse sentido, a Resolução n. 1.167/19 do MP-SP (PGJ-CGMP) dispõe em seu art. 2º, VI (sem destaques no original):

Art. 2º. Além dos casos que tenham previsão constitucional ou legal específica, conforme dispõe o artigo 5º da Recomendação nº 34/2016 do CNMP, o membro do Ministério Público deve priorizar a avaliação da relevância social dos temas e processos que lhe forem submetidos à análise, a fim de identificar o interesse público ou social que justifique sua intervenção, os quais são presumidos, notadamente, nas hipóteses de:

VI – ação individual em que seja parte sociedade em liquidação extrajudicial ou em recuperação judicial e que demonstrem relevante repercussão social ou econômica, como as que envolvam relações de consumo ou pessoas vulneráveis;

[7] Nesse sentido, o C. STJ, no julgamento do REsp n. 1.536.550 – RJ, Relatora a Ministra Nancy Andrighi, julgado em 8 de maio de 2018, em caso concreto no qual se discutia propriedade industrial, marca e trade dress, no qual se afastou alegação de nulidade do processo pela não intervenção do MP, pelos seguintes motivos, expressos em trecho da ementa:

“…3. De acordo com o art. 84 do CPC/73, a nulidade decorrente de ausência de intimação do Ministério Público para manifestação nos autos deve ser decretada quando a lei considerar obrigatória sua intervenção. 4. A Lei de Falência e Recuperação de Empresas não exige a atuação obrigatória do Ministério Público em todas as ações em que empresas em recuperação judicial figurem como parte. 5. Hipótese concreta em que se verifica a ausência de interesse público apto a justificar a intervenção ministerial, na medida em que a ação em que a recuperanda figura como parte constitui processo marcado pela contraposição de interesses de índole predominantemente privada, versando sobre direitos disponíveis, sem repercussão relevante na ordem econômica ou social…”

 

Link: https://www.conjur.com.br/2023-jul-31/direito-insolvencia-intervencao-mp-falencia-recuperacao-empresas

Petrarca Advogados